segunda-feira, 11 de julho de 2016

Comunicação: ENEFIL - Jampa 2016.

ENSAIO SOBRE O FASCISMO NO “CONE SUL”: O CASO BRASIL

  
Não podemos falar sobre os regimes militares do passado recente da América Latina sem trazer à tona o tema da constituição ideológica de suas classes dominantes e do processo histórico de formação de sua dependência ao exterior. É evidente que cada país teve um processo de formação específico e que um trabalho isolado não poderia abranger esse imenso material. Mas, de outro lado, grande número dos países que fazem parte do que hoje se chama “América Latina” foram colonizados a partir do século XV por principalmente Espanha e Portugal. Em nosso passado recente, qual seja, da década de 60 do século XX para cá, sabe-se bem que essa grande área foi de interesse direto da manutenção do poder hegemônico internacional dos Estados Unidos. Mais especificamente, daremos destaque aqui ao caso do Brasil, dentre os outros acontecimentos que se abateram na época sobre seus vizinhos próximos, na região do chamado “Cone Sul”. Diante dos últimos parcos resultados obtidos pela tardia instauração da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, o fio condutor da análise será a pergunta, em aberto, “o que significa elaborar o passado?”, feita originalmente por Adorno na Alemanha redemocratizada dos anos 60.
A partir dessa pergunta, ensaiaremos possíveis direcionamentos indicados pela crítica à ideologia, lançando mão daquilo que não concerne apenas ao contexto social alemão após a derrocada do nazismo, mas à “situação social geral” na modernidade (ADORNO, 2000, p. 33). No caso do Brasil, e do Cone Sul, em que predominou o processo de colonização européia durante séculos, precisaremos pontuar as especificidades do desrespeito social e da invasão cultural inerentes às formas de dominação e opressão que mantêm o poder oligárquico da classe burguesa (FREIRE, 2008, p. 159-160) – em uma cotidiana relação assimétrica de reconhecimento social (HONNETH, 2015, p. 248).

Crítica à ideologia: o que significa elaborar o passado?

Em primeiro lugar, não é demais frisar a que postura cognitiva se refere a crítica. Vulgarmente usada com o sentido simples de “ideário”, “ideologia” é um neologismo que ficou conhecido a partir da publicação da obra Eléments D’Ideologie (1801-1815), de Destutt de Tracy. Como um seguimento francês do empirismo lockeano, persegue-se a origem das “ideias” como fenômenos naturais obtidos através da sensação. Desse modo, as “ideias” são tomadas na acepção de “estados de consciência” do indivíduo na interação com o ambiente ao redor. Essa posição também será levada a cabo pelo positivismo de Auguste Comte no tratamento dos fenômenos sociais. Como tal postura cognitiva tende a naturalizar relações sociais que são fruto de processos históricos, o esquecimento da atividade humana situada em um contexto de interação social gera a vivificação das coisas, das mercadorias, e a dominação e mortificação daqueles que as produzem[1].
De maneira geral, observa-se como estratégia ideológica do fascismo a administração de afetos sociais, sobretudo o medo e o impulso por autoconservação. Podemos caracterizar a fundamentação inicial da filosofia social moderna a partir de seus traços anti-aristótelicos, que são em grande medida reflexo das transformações estruturais nos modelos tradicionais de sociedade no Ocidente europeu, desde a baixa Idade Média até o Renascimento. O modelo secularizado de sociedade que passa a surgir, na demanda da expansão marítima da zona comercial e do consequente desenvolvimento técnico-científico que garante cada vez maior eficiência no controle e fiscalização da circulação de mercadorias, foi um modelo que rapidamente evidenciou a competição, as ambições, a suspeita entre os indivíduos, moldados agora por um agir orientado para o sucesso pessoal. Em consequência dessa forma de agir, disseminada e justificada socialmente, surgiram as teses modernas acerca da perigosa “natureza” humana, tratada quase como uma “essência”, ou do perigo de um declínio ao caótico “estado de natureza”, a barbárie da defesa inegociável do interesse privado que instauraria a “guerra de todos contra todos”. Frente a essa hipótese artificial, seria preciso a coerção incessante do Estado, firmada previamente pela via do contrato, cujo assentimento é concedido pelos associados em troca da segurança de sua vida e de sua propriedade particular.
Mais tarde, com a crítica efetuada a partir da dialética hegeliana, ficou evidente que a cisão ética é uma característica imanente à organização da sociedade civil burguesa. Esse novo modo de organização social dessacralizou o mundo da vida humana e promoveu a impossibilidade da integração das pessoas no âmbito de suas comunidades tradicionais. Com a ascensão do positivismo nas ciências, os modelos mecanicista e atomista passaram da objetificação da natureza para a análise dos fenômenos sociais e para o próprio modo de organização da vida, operando matematicamente, do mesmo modo, apenas com quantidades e abstraindo de qualquer “resto”: qualitativo ou temporal. Assim, na sociedade de produção industrial, memória, tempo concreto e lembranças, bem como a experiência acumulada socialmente, são eliminados como “resto irracional” (ADORNO, 2000, p. 33). Esse diagnóstico permite perceber porque o esquecimento do trauma coletivo recente, do horror dos assassinatos administrativos, se deve muito mais à “situação social geral” da sociedade civil burguesa do que à psicopatologia de um contexto sociohistórico em particular[2].
Nesse texto publicado em 1963, “O que significa elaborar o passado?”, reunido na obra Educação e Emancipação, em torno de 20 anos após a derrocada do nazismo, Adorno parte da atmosfera do trauma coletivo recentemente vivido e do, digamos assim, etéreo complexo de culpa decorrente do acontecido. Tenhamos em mente esse intervalo de tempo, após a artificial redemocratização, para pensarmos o problema da elaboração do passado no caso brasileiro.
O trauma social deixa marcas em uma forma de agir cotidiana que gira em torno de relações de culpa e violência, que aparecem por vezes de maneira muito velada, por outras como um surto animalesco de ódio. Como pontua Adorno, essas relações sociais se assemelham ao quadro psicopatológico da neurose: gestos de defesa sem agressão direta; sentimentos profundos sem justificativa, mas ausência de sentimentos em situações graves; repressão do conhecido e do semiconhecido (ADORNO, 2000, p. 30).
De outro lado, chama atenção a disposição atual em negar ou minimizar o ocorrido. No caso da Alemanha redemocratizada, como diz Adorno, “existem pessoas que não se envergonham de usar um argumento como o de que teriam sido assassinados apenas cinco milhões de judeus, e não seis” (ADORNO, 2000, p. 31), aqui nós temos a expressão “ditabranda”. Entra em questão o absurdo de uma contabilidade da culpa em relação aos assassinatos administrativos, de modo que até mesmo a inocência das vítimas é desacreditada: a desmesura do mal praticado se torna justificativa – de alguma maneira, ocorreu porque elas “deram motivo”.
O discurso do complexo de culpa dá notas de algo irreal: o terrível passado seria coisa da imaginação dos afetados. Esse é um discurso que visa à destruição da memória e gera a perda da continuidade histórica, o que se vê no fato de as gerações mais jovens desconhecerem, por exemplo, o que foi e por que aconteceu o golpe civil-militar de 1964. A partir da Segunda Guerra Mundial, é possível observar a progressividade e intensificação dos princípios da racionalidade burguesa, cujo modelo de sociedade administrada é subordinado universalmente à lei de troca das mercadorias. Em sociedades tradicionais pré-capitalistas, até o advento do mercantilismo, existia a ênfase na categoria da aprendizagem, expressada pelo tempo de aquisição da experiência no ofício, geralmente resguardada por uma acumulação de saberes passados de pais e mães aos filhos. Como o tempo concreto dos trabalhadores se torna desnecessário na produção industrial, bem como a experiência acumulada socialmente, memória e lembranças são eliminadas como inúteis para a contabilidade empresarial. Vemos com isso, que o esquecimento se deve majoritariamente à organização e divisão social do trabalho, que se valem, inclusive, dos mecanismos psicológicos de recusa a lembranças desagradáveis vividas para objetivos práticos imediatos, como por exemplo, evitar mexer no período obscuro para a manutenção da imagem do país no exterior. Isso onde o parâmetro era o do trabalho assalariado livre, no nosso caso, como o Brasil se fundou como empresa colonial de base escravista, essas características estiveram sempre presentes – os exemplos históricos de silenciamento são inúmeros[3].
Assim, para Adorno, o esquecimento se deve muito mais à “consciência vigilante” do que a processos inconscientes, de que decorre a raiva de ter de convencer a si mesmo, antes de convencer os outros. A motivação e o comportamento de recusa são irracionais obviamente porque distorcem os fatos, mas são “racionais” porque se apoiam em tendências sociais vigentes. Vivemos em meio à ideologia socioeconômica neoliberal, imposta laboratorialmente nas nações proletárias da América Latina, acirrando ainda mais os princípios básicos da sociedade civil burguesa: individualismo; concorrência mútua; consequente administração dos afetos sociais do medo e da esperança.
A reintrodução da democracia no Brasil, após 1964, se deu como a transição dos outros regimes de poder: pela mão das classes dominantes e para não prejudicar os interesses da metrópole, nesse caso, dos Estados Unidos. O interesse norte-americano na implantação dos regimes ditatoriais na América Latina do período de auge da Guerra Fria fica ainda mais claro com a chamada “Operação Condor” no Cone Sul – condor, o animal que come carne pútrida e desaparece com os cadáveres. Entre as décadas de 70 e 80, essa operação se deu através do conluio entre os regimes ditatoriais e a CIA no intuito de combate aos grupos de resistência. No Brasil dos anos 70, no governo Geisel, surgiu a ideia de uma transição controlada: uma abertura “lenta, gradual e segura”. Em 1974 foi elaborada a chamada “Lei de Anistia” que poderia beneficiar os presos políticos e os exilados. Mas, foi a partir desse mesmo ano que mais opositores tiveram seus corpos desaparecidos, isso porque não se poderia deixar provas. É também o período em que a luta armada acaba. O caso mais emblemático desse fim é o de Soledad Barret, torturada e assassinada pelo DOI-CODI, grávida de seu companheiro, na verdade, um infiltrado e informante da ditadura[4].
A reintrodução da democracia aqui não provocou uma ruptura. Principalmente porque as pessoas continuam a não se reconhecerem como sujeitos do processo político, para elas é apenas mais um “sistema entre outros”. Isso porque a democracia não é entendida como expressão da vontade e do intuito da emancipação popular. Como diz Adorno, a democracia é avaliada conforme o respectivo sucesso: no qual tem vez interesses individuais, mas não como unidade com o interesse público, situação que é dificultada pelo modo de representatividade da vontade popular através da delegação parlamentar[5].
A falta de emancipação é convertida em ideologia, o que demonstra a contradição na consciência: por um lado, as pessoas se sentem como sujeitos de si, mas as condições vigentes as impedem. No caso do Brasil, essa impossibilidade é atribuída historicamente, a si mesmo ou a outros: ou a uma incapacidade própria da constituição dos brasileiros ou a grupos específicos. Esse impedimento faz com que as pessoas se dividam novamente entre sujeito e objeto. A ideologia dominante é tal que quanto mais estiverem impedidos pelas condições objetivas, mais tomarão essa impotência como subjetiva[6]. Essas pessoas, assim formadas, são o que Adorno chama de os seguidores potenciais do totalitarismo.
   
A noite de 21 anos: o fascismo no Brasil

A partir do diagnóstico da situação que realmente gera o fascismo e os “os seguidores potenciais do totalitarismo” (ADORNO, 2000, p. 37-38), podemos ensaiar prognósticos, ponderando principalmente sobre o conceito do que Adorno chama de pedagogia democrática, que operaria no esclarecimento acerca daquilo que ocorreu (ADORNO, 2000, p. 45). No caso do Brasil e do Cone Sul, poderíamos ir mais fundo, evidenciando o problema da nossa dependência ao exterior, através do desenvolvimento daquilo que Paulo Freire chama de pedagogia do oprimido, a fim de, ao elaborar o passado, que se persiga o objetivo da transformação social efetiva de nosso “subdesenvolvimento” através da educação para a prática da liberdade (FREIRE, 2008, p. 89).
O fascismo não apenas no Brasil, mas na América Latina, é de um tipo diferente e com finalidades diferentes. Isso porque a barbárie administrada aqui se instalou, não por eventualidades do Capitalismo avançado, no século XX, desgarradas como novo processo, mas como desdobramentos intrínsecos da manutenção de poder da empresa colonial, desde o século XV. A forma superior do desrespeito social perdura porque os pressupostos objetivos apenas estiveram perto de serem transformados[7]. Esse “estar perto” deixa a velha ordem em pavor pânico, que faz com que procure reconstituir sua rede de poder através da intensificação do aparato repressivo, formado pelas classes intermediárias que anseiam ascensão social, e do controle total sobre as instituições políticas.
O fascismo na Europa veio para atender a realização de um “sonho burguês antigo”, o ideal romântico de estar integrado em uma “comunidade popular” (ADORNO, 2000, p. 38), o que alimentou e, realmente, parece que satisfez o narcisismo coletivo mediano. Um processo sociopolítico muito diverso do que ocorreu na América Latina. Nossa formação sociopolítica se deu através do colonialismo, que engloba todas as formas do desrespeito social, quais sejam: a lesão física, tortura e violência corporal[8]; a lesão moral, recusa de direitos e garantias pessoais; e a destruição cultural[9]. As formas de desrespeito, como estuda Honneth em sua obra Luta por Reconhecimento, são resultado da falha na formação de reconhecimento na consciência social, em contraposição às formas: do amor, na recepção e formação da criança; do direito, no atendimento das reivindicações de grupos de interesses e da solidariedade, na formação social da eticidade inclusiva. No Brasil, como mostra muito bem Darcy Ribeiro, em sua obra magna O povo brasileiro:
“Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo o direito elementar de trabalhar para nutrir-se, vestir-se e morar. Essa primazia do lucro sobre a necessidade gera um sistema econômico acionado por um ritmo acelerado de produção do que o mercado externo dela exigia, com base numa força de trabalho afundada no atraso, famélica, porque nenhuma atenção se dava à produção e reprodução de suas condições de existência. Em consequência, coexistiram sempre uma prosperidade empresarial, que às vezes chegava a ser a maior do mundo, e uma penúria generalizada da população local. A sociedade era, de fato, um mero conglomerado de gentes multiétnicas, oriundas da Europa, da África ou nativos daqui mesmo, ativadas pela mais intensa mestiçagem, pelo genocídio mais brutal na dizimação dos povos tribais e pelo etnocídio radical na descaracterização cultural dos contingentes indígenas e africanos.” (RIBEIRO, 1995, p. 404).

A invasão cultural, em vista da manutenção do domínio, se realiza em torno de mitos repetidos, estruturados posteriormente pela forma positivista da “ordem” militarista, com o objetivo do “progresso”. Mas, progresso para quem? Obviamente que para a burguesia, que não poderia deixar de contar com o apoio da pequena burguesia, a “lança de ferro” contra a união do povo. Verdadeiras guerras de extermínio foram travadas, sempre com o apoio moral e material das instituições públicas e oficiais, com o intuito messiânico-civilizador. Elas ainda permanecem. Não foram inventadas pela ditadura. Para a classe trabalhadora, à exceção da inédita formação nacional do movimento trabalhista, não houve muita diferença na opressão cotidiana, nem houve espanto na permanência ostensiva de uma polícia militar, junção que aliás nos parece até natural. Do extermínio indígena à tortura dos negros escravizados, dos negros alforriados à formação das favelas e periferias: o capataz da fazenda e o capitão do mato do engenho não mudaram.
O tema acerca de “dizerem a palavra ou não terem voz”: Freire dá a máxima atenção, na sua reinterpretação da dialética hegeliana do senhor e do escravo, à condição de formação da consciência oprimida de ser apenas um “ser para outro”, uma “coisa” que, enquanto tal, não é uma “pessoa” que tem direitos a realizar-se. Os oprimidos enquanto “consciência servil” (FREIRE, 2008, p. 40) são os que “temem a liberdade” e são assim silenciados – “No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel preferindo-a à liberdade arriscada” (FREIRE, 2008, p. 24). Desse modo, introjeta-se formativamente neles a consciência opressora, o outro que lhes aliena, como um “hospedeiro”, que, nesse modo, age para reproduzir a rede de poder opressiva. Esse é o caso observado nas classes intermediárias. Conferir exemplo do “capataz” (FREIRE, 2008, p. 36). Conferir “coronel fazendeiro” x “cabra” (RIBEIRO, 2006, p. 200).
A formação educativa, portanto, em vista da realidade objetiva da opressão, deve ter por pedagogia, uma pedagogia libertadora (FREIRE, 2008, p. 34), na qual a relação entre educador e educando seja dialógica, ou seja, na qual é imprescindível que o educando também se revele como educador, a interação entre sujeito e objeto é de reconhecimento recíproco – o objeto, livre, também faz as vezes de sujeito, consignando a relação de liberdade. Não é o caso de se pensar em uma educação para os oprimidos, mas em uma que se faz com eles na intenção radical de “transformação da situação concreta que gera a opressão” (FREIRE, 2008, p. 40) através da práxis libertadora que continuamente liberte a todos e faça surgir uma “nova” humanidade, uma humanidade “libertando-se” (FREIRE, 2008, p. 38). O método pedagógico é a pesquisa e a construção conjunta de um conteúdo programático obtido a partir do “tema gerador”, aquilo que é da necessidade e interesse da situação dos educandos-educadores, quer dizer, a partir de sua linguagem cotidiana, de sua “palavra” (FREIRE, 2008, p. 131). O diálogo e o caráter pedagógico da revolução (FREIRE, 2008, p. 156).

Palavras-chave: fascismo; ditadura militar; Brasil.


Referências bibliográficas:

ADORNO, T W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2000.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2008.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
HONNETH, A. ­Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2015.
MARX, K. O Capital. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
URIBE, Armando. "Ideologia e folclore do fascismo chileno". In: Elementos para uma análise do fascismo. M. A. Macciocchi.





[1] Com a discussão desse tema, em O Capital, Marx mostra a tendência do pensamento burguês de naturalização dos processos econômicos, bem como a coisificação dos produtos do trabalho social, através da análise do fetichismo da mercadoria: “Até que ponto uma parte dos economistas é enganada pelo fetichismo aderido ao mundo das mercadorias ou pela aparência objetiva das determinações sociais do trabalho demonstra, entre outras coisas, a disputa aborrecida e insípida sobre o papel da Natureza na formação do valor de troca. Como o valor de troca é uma maneira social específica de expressar o trabalho empregado numa coisa, não pode conter mais matéria natural do que, por exemplo, a cotação de câmbio.” (MARX, 1996, p. 207).
[2] “Pesquisas feitas nos Estados Unidos revelaram que esta estrutura da personalidade não se relaciona tanto assim com critérios econômico-políticos. Ela seria definida muito mais por traços como pensar conforme as dimensões de poder — impotência, paralisia e incapacidade de reagir, comportamento convencional, conformismo, ausência de autorreflexão, enfim, ausência de aptidão à experiência. Personalidades com tendências autoritárias identificam-se ao poder enquanto tal, independente de seu conteúdo. No fundo dispõem só de um eu fraco, necessitando, para se compensarem, da identificação com grandes coletivos e da cobertura proporcionada pelos mesmos. O fato de por toda parte reencontrarmos figuras caricatas como as representadas nos filmes sobre meninos prodígios, isto não depende nem da perversidade do mundo como tal, nem de peculiaridades do caráter nacional alemão, mas sim da identidade daqueles conformistas, que possuem de antemão um vínculo com os instrumentos de qualquer estrutura de exercício do poder, com os seguidores potenciais do totalitarismo.” (ADORNO, 2000, p. 37-38).
[3] “O sistema econômico e político, gerando o mesmo tipo de estratificação e de ordenação cívica, criou em cada unidade a mesma forma de hierarquização que qualificava, face à sociedade total, as camadas dirigentes de cada variante como componentes da mesma estrutura de poder, e as fez essencialmente solidárias frente à ameaça comum representada pelo antagonismo das classes oprimidas. O patronato, na função de coordenador das atividades produtivas, e o patriciado, no exercício do papel de ordenador da vida social, puderam assim fazer frente a todas as tendências dissociativas, preservando a unidade nacional.” (RIBEIRO, 1995. P. 232).
[4] Estão sendo reveladas pelas investigações e pelos julgamentos, principalmente fora do Brasil, as atrocidades cometidas inclusive a mulheres grávidas: “Ao hospital militar de El Campito [em Buenos Aires] eram levadas as presas grávidas, onde eram alojadas no prédio do Serviço de Epidemiologia, sempre vigiadas por homens armados. Apesar da gravidez, as mulheres eram mantidas com algemas e capuz na cabeça. Os partos, realizados por profissionais civis e militares no serviço de Ginecologia e Obstetrícia, eram na sua maioria induzidos por cesarianas. [...]Um dos casos mais simbólicos desse drama humano é o do jovem uruguaio Simón António Riquelo, desaparecido com a mãe, Sara Méndez, na noite de 13 de julho de 1976, em Buenos Aires, onde a professora vivia exilada. Pelo padrão paranoico da repressão, o jovem era um perigoso comunista, apesar de seus tenros 22 dias de vida: Simón era um bebê, e foi arrebatado do peito da mãe pelo major de artilharia uruguaio José Nino Gavazzo, chefe de operações do SID, o temido Serviço de Informações de Defesa da ditadura de Montevidéu.  [...] Apartada do filho, Sara, encapuzada e algemada pelas costas, foi suspensa por um gancho como um pedaço de carne no açougue. Levou choques elétricos, que ganhavam intensidade quando ela conseguia tocar o chão molhado com a ponta dos pés. Em dado momento, um dos torturadores perguntou a Gavazzo porque o chão estava esbranquiçado. — Es leche! — foi a resposta. Leite que vazava do seio de Sara, leite negado a Simón, expropriado por Gavazzo, usurpado pela Orletti, sequestrado pela Condor.” In: “Operação Condor condenada: História na Argentina, vergonha no Brasil”. Publicada em 10/06/2016. http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Operacao-Condor-condenada-Historia-na-Argentina-vergonha-no-Brasil/4/36266
[5] “Na Alemanha, ouviremos com frequência dos próprios alemães a estranha afirmativa de que eles ainda não estão maduros para a democracia. A própria falta de emancipação é convertida em ideologia, tal como o faz a juventude que, surpreendida em qualquer ato de violência, procura se livrar apelando à sua condição de teenager adolescente. O grotesco numa tal argumentação revela uma flagrante contradição na consciência. As pessoas que nestes termos procuram demonstrar com franqueza a sua própria ingenuidade e imaturidade política sentem-se, por um lado, como sendo sujeitos políticos, aos quais caberia determinar seu próprio destino bem como organizar a sociedade. Mas deparam-se, por outro lado, com as sólidas barreiras impostas pelas condições vigentes. Como não podem romper essas barreiras mediante o pensamento, acabam atribuindo a si mesmos, ou aos adultos, ou aos outros, esta impossibilidade real que lhes é imposta.” (ADORNO, 2000, p. 35-36).
[6] “Conforme o ditado de que tudo depende unicamente das pessoas, atribuem às pessoas tudo o que depende das condições objetivas, de tal modo que as condições existentes permanecem intocadas. Na linguagem da filosofia poderíamos dizer que na estranheza do povo em relação à democracia se reflete a alienação da sociedade em relação a si mesma.” (ADORNO, 2000, p. 36).
[7] Cf. RIBEIRO, p. 301-302.
[8] “A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhe caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.” (RIBEIRO, 2006, p. 108).
[9] Diante dos estudos de Sartre sobre o tema, diz: “O colonialismo é entendido aqui como um estado social que deforma as relações intersubjetivas do reconhecimento mútuo, de maneira que os grupos implicados são prensados igualmente num esquema comportamental quase neurótico: enquanto os colonizadores só podem elaborar com cinismo ou com agressão intensificada o desprezo que sentem por si mesmos, já que degradam sistematicamente os nativos, os colonizados somente são capazes de suportar as ‘ofensas diárias’ através da cisão de seu comportamento nas duas partes constituídas por uma transgressão ritual e uma superadaptação habitual.” (HONNETH, 2015, p. 248).

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

O TERROR NA ERA DA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA

"A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte tipo de medo  é o medo do desconhecido."
                                                               H.P. Lovecraft, O Horror e o Sobrenatural na Literatura

                Gelam as veias daqueles que percebem a verdadeira natureza do horror: é que o terror é sempre uma pequena parcela, uma pequena amostra daquilo que o Cosmos pode nos reservar. O terror, portanto, não é propriamente a revelação inusitada daquilo que escondemos de nós mesmos, isto, pelo contrário, é patrimônio do  humor. O terror se dá apenas quando, assim como o erotismo (que permanece erótico, sem adentrar no território da pornografia) que mostra para esconder e insinua para inquietar a imaginação (e por isso o erótico é morte e flerta com o terror), aparece e logo se esconde, para que, como um vulto, chame a atenção, na escura noite da percepção.
                O terror, portanto, manifesta-se em sua natureza minimalista: o evento acontece e se o espectador tornar-se um monomaníaco e um paranoico, precisamente por aquele vulto, então ele estará aterrorizado. É devidamente a isso que o humor-negro que é efetivamente engraçado sublinha a inteligência de seu elaborador, por mais incômodo que seja, houve ainda uma dupla operação: primeiro omitiu-se, artisticamente, a informação de difícil aceitação e, em segundo lugar, foi dada uma pequena amostra do que se omitiu, ainda que como um vulto. É a melhor forma de demonstrar inteligência, tornamo-nos aterrorizados e admirados pelo autor da sagacidade.
                O humor-negro pode ser, portanto, uma maneira de ganharmos aceitação em um meio social, suscitando, naqueles que nos desprezam, um sentimento de admiração comparáveis a que se tem a um Deus, em um misterium tremendum, que atrai e congela o sangue nas veias ao mesmo tempo. Há quem diga que apenas o terror isoladamente já atrai, porque o homem também é um ser de morte  e luta incessantemente contra esta sua primeira inconveniente característica: Ser, e realiza este desprezo essencial em sonhos e em uma admiração secreta aos inimigos mais mortais.
                Por muitos séculos os povos flertam com o terror, seja como uma maneira de enobrecer ritos e histórias, seja para conquistar o respeito de seus inimigos. Para Maquiavel, o governante deve escolher ser temido porque para ele é impossível ter ambos, ser amado e temido: precisamente o grande revolucionário da política não conseguiu ser igualmente grande na psicologia. Deus é amado e temido, o terror é amado e temido, assim como a morte e o comediante sagaz.
                Precisamente porque o terror é tão útil a ponto de tornarmo-nos com ele e através dele, deuses, cresce o interesse técnico em sua mais eficiente aplicação. Na literatura, evidentemente, é discutido, por exemplo, com Alan Poe, como uma espécie de empreitada técnico-artística: o efeito é fruto da interação do leitor com um meio (que pode ser um livro) que, como uma máquina possui um objetivo e uma arquitetura bem definidos. O terror é um efeito. E assim foi sendo discutido até seu ápice, no século XX, quando se reúnem um competente time de psicólogos e médicos com o intento de estabelecer uma teoria precisa da melhor e mais eficiente maneira de se infligir dor, este esforço deu luz ao Kubark Manual, o manual de tortura enviado a todas as ditaduras latino-americanas para melhor lograrem êxito em sua empresa de controle social.
Anos mais tarde, chegaria sua versão revisada, o Honduras Manual, uma espécie de apanhado técnico e revisão das teorias que melhor funcionaram em sua aplicação. Tais manuais foram revolucionários no estudo da tortura: enquanto, na maior parte da história da humanidade, a tortura foi simplesmente a “arte” de infligir dor (como nos relatos de Cortez, na conquista da América espanhola, que cozinhava no óleo fervente índios vivos), com o Kubark, a tortura passa a ser adaptada a individualidade de cada um, já que cada um possui o seu inferno particular, o reproduziremos, então. Não apenas isto, o Kubark insere a polêmica ideia de que muitas vezes, a melhor tortura acontece sem muito tocar na vítima. A CIA começava a discutir, em seu quartel general, o conceito de privação dos sentidos. A privação de sono unida com a privação dos sentidos (sem luz solar, sem horário regulares nas ‘refeições’, sem a possibilidade de sentir o próprio corpo, em alguns casos, até de ver outras cores, no famoso ‘quarto branco’), desmantela o ego, porque impossibilita o estabelecimento de um eu sólido,  e faz com que a fonte revele todos os segredos, além de promover, a reboque, a lavagem cerebral.
 O capítulo IX do Kubark, “O interrogatório coercivo de fontes resistentes”, possui uma seção especial, a seção F, “ameaças e medo” que diz, em uma tradução livre:
“A ameaça de infligir dor, por exemplo, pode desencadear medos mais danosos do que a imediata sensação de dor. De fato, a maioria das pessoas subestima sua capacidade de suportar a dor. O mesmo princípio sustenta outros temores: se mantido por tempo suficiente, um grande medo de algo vago ou desconhecido induz a regressão. No entanto a materialização do medo, a aplicação de alguma forma de punição, é uma forma de alívio. O sujeito vê que pode suportar, e se fortalece. ‘ Em geral brutalidade física direta gera apenas ressentimento, hostilidade e desafio posterior.’” O Kubark sustenta que é melhor infligir dor física no início da tortura, não no final: dá-se apenas o script para que a vítima torture a si mesma.
                Este refino técnico – científico da tortura, naturalmente, exige uma atenção especial ao torturado, muita força energia e pessoal são gastos no processo. Uma dominação de escala global, que necessita de um controle crescente dos que estão sob seu julgo, necessita de uma aplicação mais barata, eficiente e que “atenda” mais pessoas. Assim, pois, como a empresa transnacional impessoaliza seus serviços e produtos para atender em uma escala global, também assim será com o terror e a guerra. Os grandes estados nacionais, que possuem o mundo para dominar, não podem se dar ao luxo de dedicar ‘atenção especial’ a todas as suas vítimas. Nasce o terror quantitativo.
                O objetivo, agora, é demonstrar como o Estado que pretende defender seus interesses tem capacidade para tal. Seu big-stick anônimo não escolhe vítimas, escolhe números, e portanto atende a principal característica do terror no início deste texto: mata grande parte de um povo, mas não diz quem mata. Revela apenas o mínimo para o medo se desencadear. Demonstra à maneira ocidental, como infligir dor de uma maneira geral e técnica. Esta é a versão do terror instrumentalizado.
O Terrorista do país subdesenvolvido, no entanto, não possui tais meios. Tem uma certa pureza, já que ao decapitar o cidadão provindo do país opressor, ele acha que poderá ai fazer algum tipo de pressão contra a força onipresente do Capital. Ele, diferentemente do país colonizador, ainda vê matar uma pessoa como algo grave, e quando mostra a morte em vídeo e a cores na internet livre, não poupa teatro para uma nação que está acostumada a ver sangue na televisão, e quer exprimir como a força de seu ato provém de uma situação extrema, resultante da degradação de seu povo e do povo de seu inimigo (já que agora é vítima), e que deveria pesar para os líderes políticos. Ele demonstra o sangue da vítima, escolhe alvos como escolas, hospitais e símbolos econômicos. Quer demonstrar que a gravidade de seu terror é alta. Paradoxalmente, é este terrorista que destaca o indivíduo, e o símbolo, não alvos estratégicos para a economia, em sua maioria, visa alvos morais, símbolos da manutenção daquele modo de vida,  no entanto, em sua ingenuidade não vê que a espada de seu inimigo já denuncia seu escudo. Aquele que conduz uma morte técnica em massa, promoverá uma reação ao ataque terrorista qualitativo igualmente técnica e quantitativa. A máquina de matar, que é o Capital (que mata muito mais que os terroristas qualitativos), pouco liga para o mundo da vida, a ele interessam os números: quantas pessoas, em números absolutos reagirão em contraposição aos seus interesses devido a aquele video? Poucas. Mas isso ainda é algo contornável se considerarmos o aparato técnico e instrumental que ele moverá para alterar estes números por meio da propaganda e manipulação da opinião do cidadão médio por meio da mídia.
O minimalismo do terror ocidental é tão gigantesco que ele deseja não mais mostrar um pouco de horror. Ele demonstra apenas o horror em forma e furta-se do conteúdo. O terror ocidental é mais eficiente precisamente porque está mais rente ao conceito mesmo de terror. O oriente não conseguiu ainda desvincular o medo da vida, a guerra do drama, o mito do “fazimento” que para o ocidente é sem sentido e ritualístico e que no entanto é precisamente este conteúdo perdido, e portanto esta admiração secreta daquilo que lhe falta, que o ocidente deseja resgatar em suas vitórias de guerra quando, em suas relações públicas, diz defender a liberdade, ao executar seu terrorismo. Longe das denominações oficiais, o terrorismo apenas se diversificou. 

sábado, 18 de outubro de 2014

Brevíssima Introdução à Crítica da Economia Política Moderna


Introdução

Encontra-se na obra História e Consciência de Classe (1923)[1] de Georg Lukács (1885-1971) o texto “A Reificação e a Consciência do Proletariado” (LUKÁCS, 2003, p. 193), caro à Teoria Crítica, que faz a relação entre Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920) e mostra o aspecto sistemático do empreendimento marxiano, da dialética como método de exposição das mediações da sociedade capitalista. A partir de obras como O Capital (1867), há o desdobramento da análise da sociedade capitalista, reconstituindo conceitualmente, tendo como gérmen o conceito de mercadoria – tomada como o protótipo das formas de objetividade e subjetividade. O conceito de mercadoria é tratado aqui de maneira dialética, não como coisa, mas como estrutura.
A caracterização da essência da forma mercadoria é dada em torno da teoria weberiana da racionalização e a teoria marxiana da reificação, e apresentada como coisificação de relações sociais, negligenciada pelo pensamento burguês, que não vê a mediação ideológica daquela forma na vinculação entre subjetividade e objetividade. Marx (LUKÁCS, 2003, p. 193-194), por seu turno, enxerga uma diferença qualitativa (LUKÁCS, 2003, p. 195) entre a sociedade tradicional e as sociedades modernizadas, onde há produção e a circulação em um mercado mundial, processo pelo qual a mercadoria influencia todas as realizações da vida e passa a agir em prol de sua própria justificação, na formação da consciência e do agir social. Não é, pois, de qualquer sociedade que se trata, mas aquela em que a mercadoria se alçou à forma universal (LUKÁCS, 2003, p. 196).
A reificação, portanto, não é um apêndice ao esforço teórico de Marx, mas tem de acompanhar toda a análise em seu impacto sobre a consciência. Se na consciência reificada se ocultam as relações sociais concretas, é dever da crítica dialética recompor o concreto a partir do abstrato, com no mínimo uma teoria da formação dos conceitos. Uma teoria econômica não-marxiana é, conseguintemente, imediatista (LUKÁCS, 2003, p. 211; p. 213).
Aciona-se a partir de Weber, sua tese das afinidades eletivas, segundo a qual os elementos em jogo se influenciam reciprocamente (LUKÁCS, 2003, p. 214). A semelhança é estabelecida entre a empresa capitalista e o aparelho burocrático do Estado. Por conseguinte, Lukács sustenta que o princípio constitutivo da empresa e do Estado na modernidade é o cálculo (LUKÁCS, 2003, p. 215). Em termos de racionalização, mesmo o âmbito jurídico não escapa aos modelos de impessoalidade, formalismo e especialização. Logo, a submissão do sistema jurídico ao cálculo e à abstração, produz uma relação de contemplação do indivíduo frente ao aparato técnico (LUKÁCS, 2003, p. 218).
A burocracia moderna é tomada do ponto de vista de suas formas institucionais (objetividade) e da subjetividade, pelo que se observa que o paradigma de divisão do trabalho penetrou até mesmo na ética (LUKÁCS, 2003, p. 221). O capitalismo na sociedade burguesa, diferentemente de épocas anteriores, produziu uma estrutura unitária de consciência (LUKÁCS, 2003, p. 221), uma mediação completa do sujeito ao objeto através da forma mercadoria; ele se naturalizou como forma imediata de consciência.
Lukács pretende fazer ver nas especificidades do capitalismo de Estado, a necessidade de retorno à dialética materialista, no ponto de crítica à racionalidade abstrata ou identitária. De inspiração hegeliana, expõe-se a tese de que a sociedade civil burguesa é a eticidade cindida em seus extremos (LUKÁCS, 2003, p. 223-224). Em contrapartida, retoma o conceito dialético de totalidade (LUKÁCS, 2003, p. 228), um emaranhado entre facticidade e validade nos processos de modernização.
É destacada aqui a relação entre o processo de racionalização, ou seja, e os efeitos dessa racionalização na metodologia - a perda da imagem da totalidade. Com isso, a ciência moderna mostra-se incapaz de autoconscientização, mostra sua inépcia para apreender o “substrato concreto de realidade” (LUKÁCS, 2003, p. 229).
Lukács mostra que o individualismo metodológico (LUKÁCS, 2003, p. 230-238), as robsonadas como dito por Marx, da economia cai vítima da incapacidade de visualizar totalidade da sociedade, erguendo dessa maneira uma barreira metodológica para a compreensão de crise (LUKÁCS, 2003, p. 231), não estritamente as crises macroeconômicas, mas as máculas deixadas no substrato material pela economia, amparadas em formas abstratas de racionalidade. 
Ainda na obra História e Consciência de Classe, Georg Lukács, no texto “Antinomias do Pensamento Burguês” (LUKÁCS, 2003, p. 240), apresenta as tendências reificantes do pensamento burguês, nomeadamente o racionalismo moderno (LUKÁCS, 2003, p. 246). Ao fazer o diagnóstico dessas tendências, contrapondo-se a elas, mantém operante o conceito hegeliano de experiência, o qual trabalha na reconexão da racionalidade instrumental (formal) a seu substrato material (conteúdo) com uma componente transcendente. Através daquele conceito, pretende-se que com a filosofia não se faça mera epistemologia, mas sim uma crítica radical ao formalismo da ciência moderna, rejeitando-se a reificação que está em suas bases (LUKÁCS, 2003, p. 239). Portanto, relembrar a contraposição imanente é trabalho da dialética.
      Para tanto, Lukács mostra a unilateralidade da filosofia crítica moderna (LUKÁCS, 2003, p. 240), em sua incapacidade de escapar à estrutura reificada da consciência, que se detém apenas na forma, não dando conta, por isso, do estado fragmentado do método. Como, a título de exemplo, a transformação da Metafísica na “Analítica Transcendental”, feita por Kant, este que se revela como a consumação da filosofia moderna, com sua ideia de revolução copernicana, onde o método da construção do objeto, operacionalizado pela física e pela matemática, é passado para a Metafísica.
        “Do ceticismo relativo ao método e do cogito ergo sum de Descartes, passando por Hobbes, Espinosa e Leibniz, o desenvolvimento segue uma linha direta, cujo motivo decisivo e rico em variações é a ideia de que o objeto do conhecimento só pode ser conhecido por nós porque e na medida em que é criado por nós.” (LUKÁCS, 2003, p. 242).

      O fundamento ontológico da ciência e, consequentemente, da filosofia moderna é a reificação do método (LUKÁCS, 2003, p. 243), a própria universalização da forma mercadoria. Kant, por seu turno, faz a equivalência do conhecimento formal e o “nosso” conhecimento. A dimensão do nós – a intersubjetividade compartilhada dos mundos da vida - fica, desse modo, obstaculizada, porquanto pressuposta no sujeito transcendental.
      Ora, o racionalismo moderno surge da desconexão radical entre ciência e vida e, sobretudo, sociedade e história; assim notado no desenvolvimento concomitante entre a filosofia e a ciência moderna, com sua instrumentalização. O conceito de construção, a única estratégia para responder à pergunta de onde repousa a pretensão de validade do juízo sintético a priori, já denota o sintoma da contaminação positivista, que ocasiona a tendência de aproximação entre o método das ciências naturais e as do espírito; já mostra que o mundo moderno se tornou o império do conceito. Como demonstra o diagnóstico weberiano[2], o âmbito da práxis é condenado e rebaixado a um problema técnico, ao contrário do que propunha na antiguidade clássica o pensamento grego pelo qual a técnica era considerada como subordinada à vida política.
        “Podemos igualmente dar como sabido que todo esse desenvolvimento filosófico efetuou-se em constante interação com o desenvolvimento das ciências exatas, e este, por sua vez, interagia produtivamente com uma técnica que se racionalizava cada vez mais e com a experiência do trabalho na produção.” (LUKÁCS, 2003, p. 244).

      Ao expor os dilemas e antinomias do pensamento moderno no âmbito prático, deseja-se, na esteira da Lógica de Hegel, que a necessidade e a carência de ir além do pensamento abstrato provêm da eticidade da sociedade burguesa cindida em seus extremos, donde a necessidade da dialética, que é por tal impulsionada. Esse rebaixamento da prática a questões de técnica conduz a uma cisão irreconciliável entre o racional (o abstrato) e o irracional (o conteúdo), levando ao esvaziamento da sacralidade, bem como à negligência quanto aos fins últimos da existência (LUKÁCS, 2003, p. 245). O argumento de fundo é aqui a reconexão com a totalidade (LUKÁCS, 2003, p. 247), já que o ímpeto do método reificado, incapaz de acessá-la, é uma sistematização coercitiva – em movimento oposto, o irracional, ao ficar extrínseco, faz colapsar essa sistematicidade -, remetendo ao conceito de coisa-em-si. Somente a visualização do sujeito do objeto e vice-versa pode resolver essa equação funesta, acessando a dimensão do nós. Através de sua “Dialética transcendental”, Kant faz ver que a totalidade é inacessível, ao tempo que, já aponta na direção, mais tarde por ele trabalhada, de que ela é necessária e regulativa. A racionalidade moderna expressa o problema mais fundamental da lógica: a impossibilidade de ligar os conceitos ao conteúdo. É por essa razão que Kant, em sua terceira Crítica, precisa reconhecer uma legalidade do contingente[3], ou uma contingência inteligível, um sistema coerente de leis empíricas (LUKÁCS, 2003, p. 250).
“Mas já se vê claramente, a partir do que foi exposto até aqui, o que significa o problema do dado para o sistema do racionalismo: é impossível que o dado seja deixado em sua existência e em seu modo de ser, pois, nesse caso, permaneceria inelutavelmente ‘contingente’; ele tem de ser integralmente incorporado ao sistema racional dos conceitos do entendimento. [...] A primeira alternativa é o conteúdo ‘irracional’ se integrar totalmente ao sistema de conceitos. [...] A segunda alternativa é o sistema ser obrigado a reconhecer que o dado, o conteúdo, a matéria, penetram na elaboração, na estrutura e nas relações das formas entre si; penetram, portanto, na estrutura do próprio sistema de maneira determinante.” (LUKÁCS, 2003, p. 253).

Ao modo das ciências matemáticas, a produção do objeto de conhecimento, em sua componente meramente formal, faz eclipsar o conteúdo. Esse “produtivismo”, como irá criticar Adorno mais tarde, é o princípio autocrático da racionalidade formal[4]. De outro lado, o ideal da dialética materialista é superar a dualidade sujeito-objeto, compreendendo a diferença na identidade. Para Kant, a essência concreta do sujeito-objeto idêntico é somente visualizada na ação moral, sua ética institui o primado da razão prática, que tem mais reivindicações, sobre a razão teórica. Porém, a crítica de Kant fica condicionada a um subjetivismo, pois é talhada à medida da consciência individual; como filosofia prática, não supera o individualismo metodológico nem o âmbito da mera contemplação, porquanto sucumbe à interiorização (LUKÁCS, 2003, p. 263-265).
“O princípio da prática como princípio da filosofia só é encontrado realmente, portanto, quando se indica ao mesmo tempo um conceito de forma, cuja validade não tenha mais como fundamento e condição metodológica essa pureza em relação a toda determinação de conteúdo, essa pura racionalidade. O princípio da prática, enquanto princípio de transformação da realidade, deve então ser talhado na medida do substrato material e concreto da ação, para poder agir sobre ele quando entrar em vigor.” (LUKÁCS, 2003, p. 267).
Assim, a necessidade de enunciar diferentemente os princípios da lógica formal vem da própria eticidade, o que conduz à práxis é a dialética dos conceitos em movimento (LUKÁCS, 2003, p. 269), a tessitura dos mundos da vida a que Hegel dará voz em sua Lógica.
A situação paradoxal da era moderna é, então, traçada por Lukács. Centrado no construtivismo, o mundo burguês se despede da transcendência como recurso teórico, já que os problemas deixam de transcender o ser humano, voltando-se para sua utilidade prática instrumentalizada. Mas, por outro lado, a própria reificação metodológica do individualismo solapa seus pressupostos, suprimindo o caráter ativo da ação social.
“O aspecto fundamental dessa situação já foi realçado várias vezes por nós: o homem da sociedade capitalista encontra-se diante da realidade ‘feita’ – por si mesmo (enquanto classe) -, como se estivesse em frente a uma ‘natureza’, cuja essência lhe é estranha; está entregue sem resistência às suas ‘leis’, e sua atividade consiste apenas na utilização para seu proveito (egoísta) do cumprimento forçado das leis individuais. Mas mesmo nessa ‘atividade’, permanece – pela própria natureza da situação – objeto e não sujeito dos acontecimentos.” (LUKÁCS, 2003, p. 284).

Acometido pelas patologias metodológicas do construtivismo crítico que ele próprio teceu, o mundo burguês tenta conciliar com promessas a cisão instaurada em sua eticidade, por exemplo, com a Arte. A sociedade moderna, de outro lado, autonomizou a Arte, mas ao mesmo tempo a neutralizou, ao submetê-la à reprodutibilidade técnica[5]; o que suscita o paradoxo entre a perda de seu valor de culto e a necessidade de autenticidade. O princípio da arte, que revela o desejo pela construção de uma totalidade concreta, a manifestação do sujeito-objeto idêntico, tal qual a comunidade entre produtor e produto, desvenda assim o “segredo” da relação paradoxal da modernidade com a obra de arte (LUKÁCS, 2003, p. 287). Entretanto, a obra de arte perdeu sua conexão com a práxis, presa de um individualismo metodológico ao qual ela deve sua autenticidade; o que resulta na inviabilidade da saída burguesa pela arte, porquanto se mostra como um caráter meramente contemplativo (LUKÁCS, 2003, p. 293).
“A gênese, a produção do produtor do conhecimento, a dissolução da irracionalidade da coisa em si e o despertar do homem amortalhado concentram-se doravante, portanto, na questão do método dialético. Nele, a exigência do entendimento intuitivo (da superação do método, relativa ao princípio racionalista do conhecimento) assume uma forma clara, objetiva e científica.” (LUKÁCS, 2003, p. 295).

O que possibilita Lukács observar quanto ao método de Hegel - que, por seu conceito de experiência reconduz a noção de práxis a uma prática compartilhada (a um nós) -, que, com seu conceito de saber absoluto, ocasionou uma mistificação do conceito (LUKÁCS, 2003, p. 307), parando aquém de si mesmo e reificando o método como extrínseco à contradição, porque procurou retirar o conceito do estilhaço da história. Nesse sentido, é preciso se atentar à obra marxiana, que entende a filosofia como prática social transformadora, operada por um nós, o proletariado, que deve se reconhecer como tal e assim, portanto, agir (LUKÁCS, 2003, p. 308).

Os Manuscritos de 1844

A tese com a qual Marx trabalha em sua obra, focando-se aqui sobretudo nos chamados “Manuscritos de 1844” [6], é a de que trabalho estranhado é uma necessidade antropológica: o ser humano só se realiza na medida em que se vê refletido no objeto de sua atividade. Na esteira de Rousseau[7], o moderno conceito de autonomia significa o sujeito ser capaz de determinar a partir de si suas próprias leis, ter diante de si não um Outro, mas si mesmo refletido no objeto através do trabalho[8]. A sociedade moderna ocidental, ao contrário, de maneira estrutural e sistemática, se apropria indevidamente do produto do trabalho. Até o século XVII, vigorava no âmbito teórico uma compreensão aristotélica da economia, sendo esta a ciência das regras que regulam a esfera da vida doméstica da produção (ο οἴκος, a unidade produtiva), em contraposição à política, na esfera nacional ou da πόλις. O que se constata nos processos de modernização no Ocidente é, de outro lado, a gradual cisão entre o aparelho burocrático do Estado e a denominada “sociedade civil burguesa”, a esfera social despolitizada, regulamentada pela economia nacional, em completa tensão ou contradição com o Estado[9]. Dessa forma, Marx realiza uma crítica imanente da economia nacional com o fito de expor suas contradições, ou seja, desvendar o estranhamento (Entfremdung) como alienação ou expropriação (Veräusserung), fruto da “des-exteriorização” (Entäusserung) que faz com que o trabalhador esqueça de sua exteriorização no trabalho como seu[10].
A atividade produtiva, o trabalho, é o princípio gerador da economia nacional. Apenas a economia nacional se compreendeu como produto da energia e dinâmica interna da propriedade privada, a riqueza em seu movimento, ao contrário dos fisiocratas ou mercantilistas, de forma estática[11]. Por outro lado, é preciso mostrar sua unilateralidade, a qual continua a pretender um mundo natural, a-histórico, sendo ela mesma – enquanto processo de esclarecimento, secularização - o momento que proporciona uma compreensão histórica, moderna do ser humano sobre si (MARX, 2004, p. 99-100). A economia nacional, por sua vez, apenas enuncia a propriedade privada, mas não a expõe (MARX, 2004, p. 88). Adam Smith, o “Lutero nacional-econômico”, como chamou Engels, estabeleceu uma cientificidade secularizada que possibilitou uma compreensão da essência subjetiva da riqueza, no interior da propriedade privada, não como as relíquias sagradas ou fetiches (exteriores) do paganismo católico, mas como produto do próprio trabalho (MARX, 2004, p. 99).
A sociedade moderna, que começa por prometer a emancipação individual, termina por escravizar sistematicamente, imbuída em uma nova mitologia, um novo Deus: o Capital – a autovalorização do valor, o único sujeito livre[12]. A efetivação do trabalho estranhado se dá nessa relação social assimétrica, em uma forma específica de dominação, na qual o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, mas a um outro, que possa fruí-lo e ser-lhe senhor. Desse modo, a propriedade privada, coisa dotada de valor de troca, não é epifenômeno do trabalho estranhado, contradição entre trabalhador e trabalho, mas sua decorrência lógica. A contradição da propriedade privada, portanto, é a autocontradição do trabalho estranhado (MARX, 2004, p. 87-88).

O Capital – Crítica da Economia Política

A forma mercadoria é forma mais imediata que aparece na sociedade civil burguesa, estruturando todas as formas no mundo capitalista moderno[13]. Unidade de determinações contraditórias, entre qualidade (trabalho concreto) e quantidade (trabalho abstrato), entre o valor de uso e o valor de troca, a mercadoria não pode ser tratada como uma “substância individual”, à maneira atomista, já que não aparece sozinha, mas em um contexto.
“Uma coisa pode ser valor de uso, sem ser valor. É esse o caso, quando a sua utilidade para o homem não é mediada por trabalho. Assim, o ar, o solo virgem, os gramados naturais, as matas não cultivadas etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Quem com seu produto satisfaz sua própria necessidade cria valor de uso mas não mercadoria. Para produzir mercadoria, ele não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de uso social.” (MARX. 1985, p. 49).

É já uma passagem do uno ao múltiplo, é já ela mesma uma totalidade, uma coisa “cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas” (MARX. 1985, p. 70). Por ser a forma mais imediata, a mercadoria é o que aparece inicialmente como o mais carente de determinações, tornando-se rica somente quando o capital se mostra em si e para si como processo: em si como substância e para si como sujeito – a forma refletida da mercadoria, que coloca para fora as determinações que nela estão em germe: a forma dinheiro (MARX. 1985, p. 70). É preciso, portanto, lançar mão do método dialético como método de apresentação do capital, como método para crítica da Economia Política, explicitando, na lida com os conceitos, as categorias econômicas forjadas e determinadas historicamente[14].
A mercadoria, a quem se debruça sobre seu conceito, suscita, pois, uma passagem da trivialidade à perplexidade. Enquanto valor de uso, algo para satisfação de necessidades, é algo morto, passivo, não impõe complicações. Porém, enquanto valor de troca torna-se algo vivificado, ativo. O caráter místico da mercadoria – ou seja, o caráter de um ser inanimado como que ressuscitado em um novo animismo nesse processo de esclarecimento que é o capitalismo - não provém do valor de uso nem do valor, da forma do valor, que provém da objetivação do trabalho na mercadoria. Esse caráter, diz Marx, provém da própria forma mercadoria (MARX. 1985, p. 71).
“O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. Por meio desse quiproquó os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas físicas metafísicas ou sociais.” (MARX. 1985, p. 71).

A mercadoria é algo uno em sua relação intrínseca com o múltiplo, ou seja, só é mercadoria se houver mais de uma; é, portanto, valor de uso que impõe uma relação de igualdade (trabalho abstrato) entre trabalhos privados, dependente da totalidade do trabalho social. O enigma reside no fato de que as características sociais desse sistema de produção de valores contribuem para o encobrimento dessas relações. A abstração dos trabalhos diferenciados naturalizou a normatividade dessas relações sociais tal qual a lei da gravitação[15]. O fetiche, o animismo que a mercadoria adquire na dimensão da produção, e seu enigma são, pois, facetas de um mesmo processo social, que tem seu ápice na coisificação das relações sociais, na tendência estrutural de naturalizar o valor de troca.
“A Economia Política analisou, de fato, embora incompletamente, valor e grandeza de valor e o conteúdo oculto nessas formas. Mas nunca chegou a perguntar por que esse conteúdo assume aquela forma, por que, portanto, o trabalho se representa pelo valor e a medida do trabalho, por meio de sua duração, pela grandeza do valor do produto de trabalho. Fórmulas que não deixam lugar a dúvidas de que pertencem a uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e ainda não o homem o processo de produção, são consideradas por sua consciência burguesa uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo.” (MARX. 1985,  p. 76)[16].

O método do pensamento burguês é acometido, desse modo, pela mesma reificação de que são vítimas as relações sociais na sociedade capitalista. Tomada apenas como valor de troca, a forma mercadoria é abstraída de suas qualidades, de seu valor de uso, bem como o trabalho nela empregado. O resultado dessa equação perniciosa, em que prevalece na consideração o elemento quantitativo em detrimento do qualitativo, é uma relação social entre coisas e relações reificadas - que têm de ser perpassadas pela forma mercadoria - entre pessoas. A sociedade civil burguesa é, portanto, a sociedade das mercadorias, em que estas, as mercadorias, acabam por se tornar “hieróglifos sociais” (MARX. 1985, p. 72), e, já que nelas está objetivado o trabalho social total, gelatina de trabalho não especificado (MARX. 1985, p. 47), o que se vê na mercadoria aparece para nós como feitiço – fruto do processo social de abstração dos trabalhos concretos, dispêndio de cérebro, nervos, músculos humanos (MARX. 1985, p. 51; p. 70).
“A figura do processo social da vida, isto é, do processo da produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado.” (MARX. 1985, p. 76).

Para o desvendar dialético dos segredos do lucro e do enigma do dinheiro, Marx enuncia (MARX. 1985, p. 79-80) a consequência institucional do fetichismo da mercadoria em seu reflexo jurídico pela via do contrato privado de trabalho, fundado no reconhecimento recíproco dos negociantes no mercado, do qual o direito privado burguês é a forma de fachada, na qual está contida a mercadoria e nesta a equivalência geral do valor de troca. Ora, o contrato requer esse reconhecimento recíproco mediado pela igualação na troca, que, do ponto de vista de como aparece, na “esfera ruidosa” do mercado (MARX. 1985, p. 144), é justa. Ao contrário, à medida que isso se desvenda, essa aparência revela-se como fruto da ideologia da “livre” troca de “equivalentes”: uma liberdade puramente formal, pela qual o que é trocado produz mais valor, oculto nessa relação assimétrica, do que se estaria disposto a negociar.
Na inconstância do processo de troca, que não permite que se fixe apenas um aspecto isolado - pois ao fazê-lo se é imediatamente remetido para outro -, a mercadoria, que é indiferente ao conteúdo, opera a metamorfose do uno para o múltiplo, da identidade para a diferença. Necessário é, para dar conta dessa fluidez, suspender (aufheben) essa inconstância, colocando-se no ponto de vista da unidade: o dinheiro. A perplexidade dos possuidores de mercadorias, que pensam como o Fausto de Goethe diante dessa inconstância – “No começo era a ação”  (MARX. 1985, p. 80-81) -, já foi solucionada na prática pela ação humana, uma mediação social que sumiu sem deixar vestígios (MARX. 1985, p. 84). Assim, o enigma do dinheiro é a forma mais viva do fetiche da mercadoria (MARX. 1985, p. 85), que só quer o imediato – instável, o insustentável para a dialética.
“O cristal monetário é um produto necessário do processo de troca, no qual diferentes produtos do trabalho são, de fato, igualados entre si e, portanto, convertidos em mercadorias. A ampliação e aprofundamento históricos da troca desenvolvem a antítese entre valor de uso e valor latente na natureza da mercadoria. A necessidade de dar a essa antítese representação externa para a circulação leva a uma forma independente do valor da mercadoria e não se detém nem descansa até tê-la alcançado definitivamente por meio da duplicação da mercadoria em mercadoria e em dinheiro. Na mesma medida, portanto, em que se dá a transformação do produto do trabalho em mercadoria, completa-se a transformação da mercadoria em dinheiro.” (MARX. 1985, p. 81).

Seguindo a via da lógica dialética hegeliana, ao utilizar o método de análise, no sentido mercadoria e sua troca em dinheiro, Marx expõe que as tentativas anteriores de analisar a mercadoria de forma una e isolada falharam, já que não pode ser tomada como um fator isolado, é uno e múltiplo, é também troca, é também dinheiro, que é a forma consumada da troca e não tem valor de uso. Pelo método de síntese, começa-se pelo dinheiro, mostra-se que o dinheiro é o elemento imediato que põe seus momentos enquanto heterogêneos, não contendo em si mercadoria e troca, mas implicando-os.
“O ciclo M — D — M parte do extremo de uma mercadoria e se encerra com o extremo de outra mercadoria, que sai da circulação e entra no consumo. Consumo, satisfação de necessidades, em uma palavra, valor de uso, é, por conseguinte, seu objetivo final. O ciclo D —M — D, pelo contrário, parte do extremo do dinheiro e volta finalmente ao mesmo extremo. Seu motivo indutor e sua finalidade determinante é, portanto, o próprio valor de troca.” (MARX. 1985, p. 127).

Para compreender a transformação do dinheiro em capital, há que se expor a necessidade conceitual de transitar para a esfera da produção, o essencial, em contraposição à esfera da circulação, a aparência, suscitada na e pela arena ideológica burguesa, com a ilusão da livre e justa troca de equivalentes, alicerçada em seu direito privado. Assim como aparece na esfera da circulação, capital é gerado na própria circulação a partir do dinheiro.
“O valor torna-se, portanto, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital. Ele provém da circulação, entra novamente nela, sustenta-se e se multiplica nela, retorna aumentado dela e recomeça o mesmo ciclo sempre de novo. D — D’, dinheiro que gera dinheiro — money which begets money —, diz a descrição do capital na boca dos seus primeiros tradutores, os mercantilistas. De fato, portanto, D — M — D’  é a fórmula geral do capital, como aparece diretamente na esfera da circulação.” (MARX. 1985, p. 131).

A passagem da circulação para a produção, quebra a fantasmagoria causada pela ideologia, mostrando as contradições de sua fórmula geral – ou seja, das tentativas de a circulação ser a fonte de mais-valia (MARX. 1985, p. 133) - e expondo a relação assimétrica, contida na dialética do senhor e escravo, na qual está o passo essencial para gerar a auto-valorização do valor, o capital: o trabalho excedente e, portanto, mais-valia (MARX. 1985, p. 128) -a expropriação, feita pelo proprietário dos meios de produção, do trabalho alheio, do proprietário da força de trabalho, o trabalhador.
“O processo de consumo da força de trabalho é, simultaneamente, o processo de produção de mercadoria e de mais-valia. O consumo da força de trabalho, como o consumo de qualquer outra mercadoria, ocorre fora do mercado ou da esfera de circulação. Abandonemos então, junto com o possuidor de dinheiro e o possuidor da força de trabalho, essa esfera ruidosa, existente na superfície e acessível a todos os olhos, para seguir os dois ao local oculto da produção, em cujo limiar se pode ler: No admittance except on business.” (MARX. 1985, p. 144).

Pela via de análise de Bentham, na esfera da circulação tudo se encaminharia como uma “harmonia pré-estabelecida” (MARX. 1985, p. 145), onde a mão invisível do mercado – na esteira aqui de Adam Smith - regularia o interesse universal, e cada um defendendo seu interesse privado formaria esse resultado, o bem comum. Já Hegel mostrara em sua obra Princípios da Filosofia do Direito, que aderir a tamanha ingenuidade somente poderia resultar na morte da vida política[17]. Aquela assimetria, a base oculta da sociedade capitalista, onde o fenômeno, o que aparece, está sobreposto à essência, apenas à dialética é dado reconhecer.


[1] LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[2] Como esclarece Habermas: “A política de estilo antigo, já pela própria forma de legitimar a dominação, era levada a se determinar em relação aos fins práticos: as interpretações do ‘bem-viver’ eram dirigidas para as contexturas de interação. Isso vale também para a ideologia da sociedade burguesa. Por outro lado, o programa de substitutivos hoje dominante é voltado tão-somente para o funcionamento de um sistema dirigido. Ele exclui as questões práticas e, com isso, a discussão sobre aceitação de padrões que só seriam acessíveis a uma formação democrática da vontade. A solução de tarefas técnicas não depende de discussão pública.” (HABERMAS, J. “Técnica e ciência enquanto ‘ideologia’”; V, p. 330. In: Pensadores. São Paulo: 1980)
[3] KANT, I. Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos. In: Pensadores, Editora Abril Cultural, 1974; p. 274.
[4] “[...] a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba. Ela é usada como um instrumento universal servindo para a fabricação de todos os demais instrumentos.” (ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Jorge Zahar Editora: Rio de Janeiro, 2006; p. 37)
[5] Ver BENJAMIN, W. “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução” In: Pensadores. São Paulo: 1980.
[6] MARX, Karl. “Trabalho Estranhado e Propriedade Privada”. In: Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2004.
[7] Ver, por exemplo, MARX, K. A Questão Judaica, §94.
[8] “O homem é um ser genérico (Gattungswesen), não somente quando prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas também [...] quando se relaciona consigo mesmo como [com] um ser universal, [e] por isso livre.” (MARX, 2004, p. 83-84).
[9] Ver MARX, K. A Questão Judaica, §52.
[10] “A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa (äussern), mas, bem além disso, [que se torna uma existência] que existe fora dele (ausser ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha.” (MARX, 2004, p. 81).
[11] MARX, Karl. “Propriedade privada e Trabalho”. In: Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2004; p. 99.
[12] “Sob aparência de um reconhecimento do homem, também a economia nacional, cujo princípio é o trabalho, é antes de tudo apenas a realização consequente da renegação do homem, na medida em que ele próprio não mais está numa tensão externa com a essência externa da propriedade privada, mas ele próprio se tornou essa essência tensa da propriedade privada. O que antes era ser-externo-a-si (sich Äusserlichsein), exteriorização (Entäusserung) real do homem, tornou-se apenas ato de exteriorização, de venda (Veräusserung)” (MARX, 2004, p. 100).
[13] MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. 2ª Ed. Volume I. São Paulo: Nova Cultural, Col. Os economistas, 1985; p. 45.
[14] “[...] o problema da mercadoria não aparece apenas como um problema isolado, tampouco como problema central da economia enquanto ciência particular, mas como o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais. Pois somente nesse caso pode-se descobrir na estrutura da relação mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa.” (LUKÁCS, Georg. A Reificação e a Consciência do Proletariado. In: História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, p. 193).

[15] “É mister uma produção de mercadorias totalmente desenvolvida antes que da experiência mesma nasça o reconhecimento científico, que os trabalhos privados, empreendidos de forma independente uns dos outros, mas universalmente interdependentes como membros naturalmente desenvolvidos da divisão social do trabalho, são o tempo todo reduzidos à sua medida socialmente proporcional porque, nas relações casuais e sempre oscilantes de troca dos seus produtos, o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção se impõe com violência como lei natural reguladora, do mesmo modo que a lei da gravidade, quando a alguém a casa cai sobre a cabeça.” (MARX. 1985, p. 73).

[16] Comparar análise dos escritos de 1844, em que ainda se usava a expressão economia nacional: “A economia nacional parte do fato dado e acabado da propriedade privada. Não nos explica o mesmo. Ela percebe o processo material da propriedade privada, que passa, na realidade (Wirklichkeit), por fórmulas gerais, abstratas, que passam a valer como leis para ela. Não concebe (begreift) estas leis, isto é, não mostra como têm origem na essência da propriedade privada.” (MARX, Karl. “Trabalho Estranhado e Propriedade Privada”. In: Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2004; p. 79.)
[17] Cf. §§ 185-188. “A economia política é a ciência que neste ponto de vista tem o seu ponto de partida e que, portanto, deve apresentar o movimento e o comportamento das massas em suas situações e relações qualitativas e quantitativas. É ela uma das ciências que nos tempos modernos surgiram como em seu terreno próprio. Demonstra o seu desenvolvimento (e aí reside o interesse dela) como o pensamento (cf. Smith, Say, Ricardo) descobre, na infinita multiplicidade de minúcias que se lhe apresentam, os princípios simples da matéria, o elemento conceitual que os impele e dirige. Se constitui um fator de conciliação descobrir no domínio das carências esse reflexo de racionalidade que pela natureza das coisas existe e atua, também é esse, inversamente, o domínio onde o intelecto subjetivo e as opiniões de moral abstrata desafogam a sua insatisfação e azedume moral.” (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo : Martins Fontes, 1997; §189, Nota).