terça-feira, 26 de março de 2013

A aldeia Maracanã


“Não há propriamente uma questão indígena. Há uma questão não-indígena. Quer dizer, nós, não índios, é que somos o problema.” (Darcy Ribeiro, em discurso que aparece no vídeo abaixo, em 1978)



Como os brasileiros muito bem sabem, Maracanã, ave da família dos psitacídeos – ou seja, do grego ψιττακός, ou papagaio -, se refere a vários pássaros típicos das florestas tropicais, semelhantes na etimologia e em formas às Araras. 

Periquitão-Maracanã (Aratinga leucophthalmus)[1]

O próprio sítio do Estádio de Futebol Maracanã, assim se refere ao nome como uma de suas curiosidades:
“Por que o nome Maracanã? A palavra ‘maracanã’, em tupi, significa ‘maracá’ (chocalho) e ‘nã’ (semelhante).  O termo designa um som emitido por um pássaro da família Psittacidae, conhecido como ‘maracanã’, presente em várias regiões do Brasil. À família pertencem espécies como o papagaio, a jandaia e a arara. Antes da construção do estádio, havia no local uma grande quantidade das aves.” [2]
A ave maracanã, assim como a multiplicidade da fauna brasileira, é citada dentre as exaustivas enumerações poéticas de Mário de Andrade no seu Macunaíma – O heroi sem nenhum caráter. Por outra parte, Hans Staden, aventureiro alemão que depõe os considerados primeiros relatos sobre o Brasil na década de 1550, em Duas Viagens ao Brasil, diz acerca dos maracás[3] – as entidades ou deuses, dos tupinambás, antropófagos dos quais ficou cativo –, que eram chocalhos ornamentados, observados também em muitas outras etnias. Não se pode aqui negligenciar o nome daquele registro cultural afro-brasileiro, o maracatu.
“O significado etimológico do termo maracatu enseja algumas explicações. Aplicado a um tipo de ‘dança dramática’ de origem africana, é Mário de Andrade quem confessa não haver encontrado a palavra em qualquer documento anterior ao século XX. Trata-se possivelmente de vocábulo formado por aculturação, o que se infere, dessa forma, de interpretá-lo — o maracatu — ‘como voz africana, porque ele se assimila facilmente a fonemas guaranis’. E explica ainda: ‘Maracá é um instrumento ameríndio de percussão conhecidíssimo. Catu, em tupi, quer dizer bom, bonito, aglutinando, em seguida, lembrando a formação maracá — catu, do que resulta maracatu fundidas as duas sílabas cá’.” [4]
A aldeia Maracanã não tem mais seu território original há décadas, assim como várias etnias BRASILEIRAS cristianizadas, marginalizadas e assassinadas. Não é que esses fatos sejam únicos na história humana, nem que guerra ou outras catástrofes possam deixar de acontecer. Não se pode chegar a uma ingenuidade desse nível! Mas, o que se deve reconhecer, é que o discurso largamente defendido pelo neoliberalismo econômico – modelo que agora vige nas práticas sócio-políticas do Brasil e largamente no mundo -, de que se deve defender a “liberdade” dos indivíduos, noção primordialmente econômica (como se cada ser humano fosse uma formiga operária), é diretamente contrário ao que se faz para mantê-lo: ou seja, exclui-se aqueles que estão marginais a esse modelo, marginaliza-se, quando não, autoriza-se tanto judicial como politicamente o extermínio, como aconteceu a vários outros povos (ex. os Kaiowás). É propriamente a contradição, no sentido marxiano, a ser evidenciada.
De outro lado, está aí o resultado da modernidade, do período industrial, etc., etc.: seres extremamente individualistas - com, claro, computadores em frente ao rosto e redes sociais, a glória do “progresso” e tal -, dispersos e incapazes de inter-relação pessoal sem auxílio de um pedaço de papel - o dinheiro capitalizado.

Sítio da Aldeia Maracanã: http://aldeiamaracanarj.wix.com




[3] “Neste entretempo, os homens se juntaram numa outra cabana. Lá beberam caium e cantaram em honra aos seus ídolos, chamados maracás, que são matracas de cabaça e que tão corretamente lhes anunciaram a minha captura.” (Staden, H. Duas Viagens ao Brasil: Primeiros registros sobre o Brasil. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.


Na conferência Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético, de Slavoj Žižek, o qual veio à Universidade de Brasília, no dia 12 de março de 2013, o índio Ash Ashaninka (que aparece aos 14:54 min do vídeo acima) pede o apoio e já prenuncia a retirada – desmedida e estúpida como foi – dos indígenas da Aldeia.


Foto por Alan Tórma

domingo, 24 de março de 2013

A Coca-cola por eles mesmos: Documentário da História da Coca-cola.


OBID - Observatório Brasileiro de Informações Sobre Drogas:

"Era conhecida como a 'planta divina dos Incas', as mais antigas folhas de coca foram descobertas na região do Peru em 2500 – 1800 a.C. Ao chegar a esta região, no século XVI, os espanhóis entraram em contato com os índios, que costumavam mascar folhas de coca no dia a dia.  


A partir do século XIX, na Europa, a droga teve seu uso difundido como um energético indicado para o tratamento de depressão, fadiga, neurastenia e dependência de derivados do ópio. A cocaína passou a ser vendida sob várias formas, nas farmácias, como medicação, além de ser encontrada em bares, na forma de vinho e refrigerante.

Até 1903, a Coca-Cola era um xarope de coca. Nessa época, os fabricantes, preocupados com o risco de dependência, retiraram a cocaína da fórmula, substituindo-a por cafeína. Em 1914, a venda e o uso de cocaína foram proibidos. O consumo quase desapareceu, retornando a partir da década de 60." 


segunda-feira, 18 de março de 2013

Coca-cola e cerveja – bebidas sagradas do período industrial




A Coca-cola é mais uma das aberrações do período industrial. Enquanto que a cerveja, ou as bebidas alcoólicas em geral, pode estragar famílias – desde o início de seu uso -, a Coca-cola, ou os estimulantes afins deste período, não só destrói famílias, como está acabando com o próprio habitat humano – sim, e dos outros animais, o planeta inteiro está nessa trama.
            A cerveja foi uma das primeiras bebidas alcoólicas, nascida na Mesopotâmia, Suméria como se sabe, e tinha uma função ritualística – consagrada à deusa Ninkasi – dentro do ciclo anual de festas sagradas. O descontrole era caso isolado, pois, em primeiro lugar, havia outro tipo de relação que não a obrigatoriedade do consumo.
            Ao contrário, a Coca-cola, um dos frutos amargos do período industrial, foi assimilada pelo sistema capitalista como a sua “bebida sagrada”. Quando se bebe e se consome esse produto, se é induzido ao estímulo e à sobriedade – ótimo refresco para que se volte ao trabalho e se produza mais e mais com vigor... O conhecido Tempos Modernos (1936) de Chaplin retrata bem o que tenho em mente. A cena em que Chaplin se entope de cocaína é essencial – aliás outra droga do período industrial, que de início era consumida juntamente com a Coca-cola pelos burgueses.


            Por outro lado, a cerveja – como qualquer outra coisa – foi dessacralizada e assimilada pelo sistema produtivo. Amiga da recreação e da embriaguez, seria a inimiga número um da lista do sistema produtivo, onde e no qual se exige o trabalho em excesso. Mas, como o cinema e o parque de diversões – ou os shopping centers (centros de comprar) – do domingo, que Adorno caracteriza como continuação do trabalho, a cerveja foi apropriada como um “refresco” ou “dormitivo” legalizado para que o trabalhador se entorpeça à noite e volte ao trabalho no dia seguinte.
            Aqui no “país do futebol” – aliás, outra coisa apropriada – o trabalhador, que às vezes domingo de manhã joga bola com os amigos, chega em casa ou sai do trabalho, assiste a um jogo tomando uma latinha de cerveja, sonhando com os jogadores que se divertem com uma bola de borracha – ou o que for – e ganham milhões por ano. O sonho, a ilusão do(a) trabalhador(a) de “ficar rico”, é alimentada na embriaguez do álcool, mulheres rebolantes e esportistas milionários. Estes, a versão contemporânea e neoliberalista dos gladiadores escravos, até inauguram ONG’s para “ajudar” meninos carentes a chutar bola e para fazer referência a seu passado de pobreza. Agora, patrocinam o ciclo de miséria e mais perversões (no sentido clínico mesmo, como Zizek nos apresenta. Ex.: café descafeinado, cerveja sem álcool, etc.) que o sistema produtivo induz e produz para que se continue a “ter prazer”, e que de qualquer modo se consuma. Há obrigação até mesmo, ou principalmente, de se ter prazer...


domingo, 17 de março de 2013


Acerca da Existência

Para aclarar o sentido do termo “existência” como termo técnico, assim como trabalhado pela Filosofia da Existência, lançarei mão de minha obra Metamorfoses na Jugular Petrificada em sua Parte I do Capítulo IV, o qual tem por título “O perigeu de vermes à morte”. Nessa parte, Hermes, personagem que narra suas introspecções na obra, faz suas reflexões sobre o fim, o fim próximo – esse é o capítulo final da obra.

“Em um cemitério qualquer da cidade - não que esteja ocultando ou receoso de nomear, apenas não o desejo fazer – venho sozinho no dia de hoje, que é talvez o dia mais estático da semana, infelizmente pela Era Vulgaris em que ainda vivemos, a qual determina que seja um dia de descanso por um tal pensamento desprezível.
Deixo claro neste instante a característica iracunda e estúpida que estou vivendo, pois, como me parece, não estou suportando nem mais a mim mesmo. Por ora, não estou suportando mais ser isto, neste corpo, neste impreciso lugar. Uma turba de setas atravessa minha mente com voracidade e me faz odiar. Esse turbilhão de sensações e pensamentos me inclina a não aceitar mais, a não ser mais paciente com o mundo.
O jazigo que faço de assento – com Thánatos ao lado - está úmido como o ar, o solo, as plantas e eu. Chove uma garoa leve e incessante. Não sei se chove de fora para dentro ou de dentro para fora de mim, sinto-me, apesar da aversão, em uníssono com a reflexão que me proporciona o lugar e a ocasião. E é por isso mesmo este o local mais apropriado, o único que me traria tal apaziguamento e que geralmente me trouxe.
Desde os modos púberes obtenho descanso provisório - o que é propício – aqui, acompanhado ou sozinho, me foi o bosque de inspirações por onde passava a linfa do meu Parnaso e do meu Febo, por onde passeavam minhas ninfas corrompidas, prostitutas inspiradoras. Muitas memórias me lembram agora nesta introspecção: de poesias que escrevi sentado talvez até neste mesmo túmulo, debaixo desta mesma árvore; de muitos vinhos que bebi, do bafo de Shiva que traguei e de muitos outros artifícios que utilizei para fugir e ir de encontro com a realidade que parece me cercar e com a gravidade que parece me sugar para o chão obstando minha essência expansiva e volátil, respectivamente; de muitas conversas e ideias que realizei; de interpretações da Natureza e do que é humano que inferi e tantas coisas. Por vezes, tal qual esta, quis que tivesse aqui também um Letes para que eu pudesse me esquecer e ao resto.
A realidade se resume ao acerbo, ao vazio, ao triste: não parece comportar o fantástico e o belo. Se porventura buscas na realidade algo mágico, irás encontrar um grande muro para chocar-se. É o que procuro evitar, ver algo de dócil nisso, e mesmo sendo tão cauto me deparo com ele: pronto para me partir ao meio. A parte que me aflige é justamente a humana... E quais outras não o são? Talvez as construções: são produtos humanos, mas não têm característica humana, são desenhos, músicas, livros, esculturas – não-tocáveis diretamente pela realidade, apesar de o rastro de sua nequícia conseguir, por vezes, deixá-los obsoletos. Porém, também são produtos da realidade - sou um filtro que a sorve e a interpreta - são, portanto, visões, imagens, pensamentos conjecturados consequentes disso. A questão é: depois de definidos não podem ser alterados senão pelo ser humano, a realidade não pode mais incidir, suas essências já foram determinadas, diferente da do ser humano que é mutável de acordo com suas escolhas e com o Caos que as dirigem?
Das muitas vezes que por aqui estive ainda não havia estado em tamanha misantropia e entropia intrínsecas... Desgoverno... Este meu singrar às cegas já me causa hemorragia grave... Não consigo ouvir senão gritos ecoando em meio às negras árvores retorcidas do cerrado, olhar para o céu e ver plúmbeas nuvens carregadas de pesar e lágrimas, a estepe gélida e umedecida donde sou lobo solitário a bramir em agonia... Ferido... Desgarrado da matilha e do ambiente natural. Nem mesmo o carmesim ocaso me é possível agora, vejo o escurecer noctívago em tons preto, branco e cinza...
Neste momento já se torna quase impossível escrever sem uma vela a me guiar rutilante na escuridão – peço ajuda a Ártemis para que me guie com seus cabelos cerúleos e argênteos intermitentes ante o céu nebuloso. Eu, como os que jazem abaixo de mim, sou mais um, não é necessário viver, urge construir! Já dizia o luso poeta. Construir para que não sejamos como os demais animais, para que não sejamos mais um no rebanho, iguais em cinzas esparzidas e debaixo da terra - la grand danse macabre. O que distingue nossa existência são nossas construções, mas o veio da imortalidade só é dado a alguns, tais que não desfrutam por não poderem saber já que isso apenas é calcado post mortem e com o valor dado gradativamente pelos vindouros – o complexo da imortalidade. O que pensaram estes sob minha pena antes de morrer sobre a morte? Um além-vida, se crédulos; ou um fim, por assim dizer, se descrentes? Meu pensamento mira para a incerteza e a imparcialidade, a não tomar partido: vejo como uma bela dama desnuda com um fino véu translúcido a cobrir-se, a morte; não a quero em pesados trajes, a quero crua e fresca. Ao que me consta, somos animais como os outros e portanto, analisando fatos extrínsecos à essência humana, reflito o fenecer do meu Lobo Guará hipotético: é terminado, por um motivo qualquer, mais um ciclo da natureza; ele existiu e deu existência a outros seres na realidade, findou a de alguns, transformou; agora observo-o apodrecer longamente dando início a novos ciclos da natura. Vermes e insetos se alimentam de suas reminiscências, a terra ao redor é fertilizada, plantas irão se alimentar dos minerais e nutrientes ali coletados, outros animais utilizarão de tais plantas e daí o Caos segue. É o que acontecerá com meu corpo se porventura morrer numa floresta. E o que acontecerá com minha consciência? Definhará com os neurônios pútridos de meu cérebro. Como também é possível de diversas maneiras perdê-la em vida: em estado vegetativo, em coma, desmaiado et coetera; nesses casos somos não mais que animais como os outros, sem o pensar atuante,  o que, claro, apesar disso não o deixamos de ser. E então, apesar da psique, qual o grande mistério dessa plutônica dama – a lúrida imago mortis? Quando se reflete acerca da morte humana é feito um grande alarde e quando da morte de outros seres nada de enigmático é erigido. Uma reflexão um tanto esparsa, uma omissão um tanto desejada por parte de alguns, a qual desejo destruir ou completar mais que a mim mesmo. Pergunto-me: é necessário tal lacuna, tal mistério? É necessário o existir ser condicionado a algo inexistente? A mim não. E pelo que vejo aos outros animais também não. Tal necessidade nem é possível também, já que somos objetos integrantes de realidades e não de sobre-realidades e afins, por fim essa interação seria contraditória. Na verdade, são realidades imaginárias essas denominadas sobrenaturais. E o além-vida, não mais do que suposições do que seria se houvesse a possibilidade da dualidade alma-corpo, imagina-se vários tipos de fins e recomeços como: o Hades, o reino de Hell e o Asgard, a reencarnação, a eternidade da alma ou não. O interessante também é não se perguntar como surgiu a crença em que se acredita: apenas se obedece à tradição. O início da disseminação é dado pelos rapsodos, pajés, mártires e vários outros que através de alguma alucinação começam a produzir os óculos e outros utensílios com os quais a grande massa irá perceber o mundo ao seu redor. Não obstante, as sociedades ágrafas, tribais, pagãs - como as civilizações mesopotâmicas, meso e sul-americanas, egípcia, grega – formulavam, também, seus mitos a partir dos astros, orbes e estrelas; povos vizinhos praticaram o intercâmbio cultural - ai o porquê de muitas crenças serem parecidas, com números simbólicos, datas, histórias, gêneses idênticas, que não mais são do que os ciclos celestes. Sim, se há o princípio da formulação há também um fim em várias delas: o Ragnarok, as profecias maias (apesar de em certos aspectos terem respaldo nas observações astronômicas e científicas, como a medição do movimento de precessão da Terra, o que é digno de admiração) e tantos outros que dão um limiar e o fim de uma sentença lógica para que o raciocínio esteja completo e seja facilmente aceitável. Essas proposições dão uma sensação de segurança indizível como explicações imediatas do Universo e dos fenômenos. Tal fortaleza também sentia Actéon ao ocultar-se na relva pensando lograr êxito em ver a pia filha de Leto em seus mais belos encantos, suas intocadas curvas, pudica e indomada... Ó! Ter a imagem virginal não tida por outrem... Qual observar o ninho de uma águia ou uma onça a poucos metros, qual imergir ferido num rio infestado de piranhas, qual invadir um território Tupinambá em pleno festim antropofágico - terminando fatidicamente como banquete... [...]”

            O que impele a Filosofia da Existência, e a Filosofia desde seus primórdios, é a pergunta pelo sentido de “ser”. A própria inquirição de Parmênides, o eleata, resultou em uma doutrina do ser, o seu assombro diante desse “rígido e mortal silêncio do mais frio e vazio de todos os conceitos” [1]. A filosofia eleata firmou base para toda a ontologia posterior, e uma de suas preocupações principais foi a de destacar o ser como conceito, erigindo para si um método que considerava a sensibilidade como enganadora, os próprios sentidos como uma ilusão; a partir de então a metafísica, ou o “campo do supra-sensível” como chamou Kant[2], o modo de especular sobre o mundo dos conceitos impulsionado por esse conceito angular que é o conceito de ser; na distinção entre essência e aparência foram colocados como ilusórios também o tempo e o movimento.
            No trecho destacado da obra supracitada, Hermes suscita questões caras ao tema. Todavia, seus questionamentos não têm um trato de via fenomenológica, ou seja, não partem do ponto do método fenomenológico, o que se põe como crucial para a Filosofia da Existência tal como Heidegger o propôs em sua obra Ser e Tempo de 1927. Heidegger, filho dos desdobramentos da filosofia moderna, como o cogito ergo sum de Descartes, se impõe a tarefa da destruição da história da ontologia. Ontologia é o estudo das coisas que são, dos entes, está na constituição da palavra o particípio presente do verbo grego ser (εἰμί) - ὄντος, aquilo que é, sendo. Por outro lado, nossa palavra portuguesa ente deriva do também particípio presente latino ens, entis do verbo ser (sum). A característica do tempo presente está atrelada à coisa, cada vez que falamos sobre ela ou nos referimos a ela em nossa língua ocidental. Ser, como distingue Heidegger, é cada vez ser de ente. No entanto, este ser não é ele mesmo um ente, como os filósofos antigos o trataram.
            “Ente é tudo aquilo de que discorremos, que visamos, em relação a que nos comportamos desta ou daquela maneira; ente é também o que somos e como somos nós mesmos. Ser reside no ser-que e no ser-assim, na realidade, na subsistência, no consistente, na validade, no Dasein [...]” (HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Introdução. §2, p. 45)
            A analítica do ente existente – o Dasein -, segundo Heidegger[3], é a primeira exigência da pergunta pelo ser, orientada para a tarefa que conduz à elaboração da questão-do-ser. Essa analítica é o modo que dirige o acesso a esse ente, não se deve aplicar dogmática e construtivamente qualquer ideia de ser e de realidade efetiva. Desse modo, não há uma completa ontologia do ente existente, é provisória, pois, lhe põe à mostra mas não lhe interpreta o sentido – há uma interpretação do tempo, como meta provisória, horizonte possível da compreensão-do-ser em geral; tempo como algo a partir de que o ente existente interpreta e compreende algo como ser, repetidamente é preciso interpretar as estruturas desse ente como modos da temporalidade. O ente propriamente existente é propriamente histórico, dado que Hermes ao longo de suas elucubrações tenta suspender.
            A respeito da pergunta pelo ser, o “perguntar” é um caráter próprio do ser, enquanto comportamento de um ente (o perguntante). Esse perguntante é o ente humano, o Dasein, o propriamente existente. Portanto, existir é possibilidade própria do ser humano, aquele que é capaz de perguntar pelo ser – ou seja, que é capaz de ontologia. O ente existente tem, por isso, precedência multíplice diante de qualquer ente, como Heidegger distingue: precedência ôntica, pois é determinado em seu ser pela existência; ontológica e uma condição ôntico-ontológica, porquanto pertence-lhe um entendimento do ser de qualquer ente não-conforme a ele.[4] A analítica existenciária de Heidegger busca a ontologia-fundamental, base e princípio de qualquer outra que vier a surgir.
            Assim, a palavra portuguesa existir tem sua origem no verbo latino exsisto,-is,-ere: sair de, elevar-se acima de, surgir, aparecer, apresentar-se, mostrar-se. Donde, a noção do modo do ser desse ente existente, de algo que se expulsa, que fica de pé e respira (como na metáfora dos antigos e na noção homérica de ψυχή, como um hálito, um sopro de vida que se esvai do corpo ao morrer[5]), mas que se mostra e se exibe, se constrói e se mantém construindo, subsistindo (sisto,-is,-ere). Assim como contesta Nietzsche[6] e como Abbagnano explicita, de acordo com a analítica da Filosofia da Existência:
            “O homem só se constitui na indeterminação enquanto a indeterminação já foi, só enquanto ela está no passado, já ultra-passada e transcendida. O estado de indeterminação supõe um movimento que vai além da indeterminação. A ultrapassagem da indeterminação, o sair dela é o existir (exsistere).” (ABBAGNANO, N. Introdução ao existencialismo, p. 50)
            A existência, portanto, é o ser em relação ao qual o ente existente pode comportar-se e persistentemente se comporta desta ou daquela maneira, está em jogo em seu ser esse ser ele mesmo, em uma compreensão mediana e vaga se compreende – é próprio dele que esteja aberto para si mesmo[7]. Sua “determinação-de-essência”, como chama Heidegger, não se efetua por um quê de conteúdo-de-coisa, a sua essência está em esse ente ser cada vez seu ser como seu. Compreende-se o ente existente a partir de sua existência – a partir da possibilidade de ser si mesmo ou não, ou escolheu essas possibilidades ou chegou a elas ou se construiu cada vez nelas.
            Nossa palavra essência (essentia) procede do verbo ser latino no infinitivo (esse), é simplesmente a natureza duma coisa, o ser de um ente. O que se pode notar, então, desse ente existente é que não tem uma essência acabada, ela está, por assim dizer, “por se fazer” – a cada momento por se “acabar” na existência.  
            O método descritivista do aparecer, tomado da fenomenologia de Husserl por Heidegger, quer romper com as dicotomias metafísicas fenômeno/coisa-em-si, sujeito/objeto acalentadas longamente ao decorrer da filosofia moderna. A fenomenologia exprime a máxima: “às coisas elas mesmas!”. Esse conceito-de-método não caracteriza o quê de conteúdo-de-coisa, mas seu como[8].
            “Nessa apreensão do conceito de fenômeno, permanece porém indeterminado o ente de que se trata como fenômeno e permanece em geral em aberto se o que cada vez se mostra é um ente ou um caráter-de-ser do ente; assim, o que se alcançou até agora foi unicamente o conceito formal de fenômeno.” (HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Introdução. §7, p. 111)
            Em contraposição a qualquer filosofia da interioridade, de que podem ser chamados os precursores (costuma-se citar Pascal, Nietzsche ou Kierkegaard, etc.) do existencialismo ou Filosofia da Existência – não se faz aqui distinção entre esses dois termos -, há, pois, a crítica dirigida àquilo que se poderia chamar “filosofia alimentar” – em outras palavras, correntes de pensamento onde se usa da noção de que conhecer é comer, digerir. A consciência, por assim dizer, não tem “interior”, aquilo que pode ser expresso pela frase de Hermes: “Não sei se chove de fora para dentro ou de dentro para fora de mim [...]”. Todavia, ao contrário, não há dentro, até nós mesmos estamos fora, no mundo, entre os outros – como diz Sartre no texto “Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade”. Existir nesse sentido é estar jogado, estar sendo expulso. Como para Heidegger, ser é estar-no-mundo em movimento.
O caráter abrupto desse “estar jogado”, ser-aí, é bem expresso pelo personagem de Albert Camus, em sua obra O estrangeiro, Meursault. Onde o absurdo da existência - na qual estamos jogados gratuitamente, sem fim a preencher – é destrinchado. Meursault: o personagem que mata um homem desconhecido “por causa do sol” [9].
“Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. [...] Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo.” (CAMUS, A. Mito de Sísifo, p. 20).
Algumas considerações feitas ao existencialismo de antemão trataram-no por puro irracionalismo, ao se depararem com asserções como a feita acima. Lembrando a resposta de Abbagnano[10], também se pode visualizar o caso de Isak Borg, personagem principal do filme Morangos Silvestres de Ingmar Bergman, o qual se dirige para receber o grau honorário da Universidade de Lund por seus 50 anos de carreira, trajetória na qual percebe, apesar de sua carreira de sucesso, seu completo fracasso existencial. O racional não está excluído, por vezes a atitude concreta de uma personalidade passa por um processo profundamente pré-reflexivo, ainda assim a atitude existencial, do constante escolher-se, permanece a cada ente existente independentemente de adesão a este ou aquele pensamento, convicção, narrativa, etc.      
Bibliografia:

ABBAGNANO, N. Introdução ao existencialismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
CAMUS, A. O estrangeiro. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
________. O mito de Sísifo. 3ª Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2006.
Dicionário Latim-Português. 2ª edição. Porto: Porto Editora, 2001.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.
HOMERO. Odisseia. São Paulo: Ed. 34, 2011.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. In: Pensadores, Editora Nova Cultural, 1999.
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Era Trágica dos Gregos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego – Português/Português – Grego. 8ª Ed. Braga, Portugal: Livraria Apostolado da Imprensa, 1998.
TÓRMA, Alan. Metamorfoses na Jugular Petrificada. São Paulo: Clube de Autores, 2012.



[1] NIETZSCHE, F. A Filosofia na Era Trágica dos Gregos. XI, p. 91.
[2] KANT, I. Crítica da Razão Pura. In: Pensadores, Editora Nova Cultural, 1999. Prefácio à segunda edição, p. 41.
[3] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Introdução. §5, p. 75.
[4] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Introdução. §4, p. 63.
[5] Ver o diálogo de Odisseu com sua mãe no Hades: Odisseia, XI, 205-22.
[6] NIETZSCHE, F. A Filosofia na Era Trágica dos Gregos. XI, p. 95.
[7] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Introdução. §4, p. 59.
[8] Idem. §7, p. 101.
[9] CAMUS, A. O estrangeiro, p. 95.
[10] ABBAGNANO, N. Introdução ao existencialismo, p. 15.