O Matriarcado como Condição Humana Original e Libertadora
“Há coerência na
loucura antropofágica – e
sentido no não
senso de Oswald de Andrade”.[1]
INTRODUÇÃO
O presente texto pretende compreender quais foram as influências filosóficas
do Movimento Antropofágico e suas
contribuições para o pensamento filosófico universal. Antes de qualquer coisa, sabe-se que consistiu num movimento de
vanguarda essencialmente artístico-literário capitaneado por artistas e
intelectuais brasileiros de inícios da década de 1920 que pretendia um radical
afastamento da arte nova em relação às tradições passadas e a afirmação da
cultura nacional originária frente ao aparelhamento colonial político-religioso
opressivo sob o qual se formou a sociedade brasileira. Surgia com essa arte um
retorno, mas não acrítico, às formas “primitivas”
de expressão, inspiradas na arte africana e indígena, que apontavam para o
pensamento selvagem ou mitopoético,
entendendo-se selvagem como contraste ao pensamento “civilizado”, pragmatista e
servil. Esse foi o espírito motivador para Oswald de Andrade na escrita do Manifesto da Poesia Pau Brasil, texto –
fundamental para o Modernismo brasileiro – que abordou tanto o primitivismo de
caráter psicológico quanto o da experiência da forma artística externa. Esta
obra serviu de precursora da Antropofagia,
cujo início se daria com a publicação em maio de 1928 do Manifesto Antropófago, de autoria do mesmo escritor. Neste, o autor
usa, imiscuídas num só discurso, imagens e conceitos, provocação e
argumentação, piada e reflexão filosófica como forma de crítica ao pensamento
linear europeu. Escolhida por seu poder de escândalo, a palavra “antropofagia”
serve para ferir a imaginação do leitor com a recordação incômoda do
canibalismo, retraduzida em possibilidade permanente da espécie. Repleta de
ressonâncias mágicas e sacrificiais a palavra funciona como instrumento de
ofensa pessoal que alarga e retrai os contextos éticos, sociais e religiosos.
Ela fala da agressão ao inimigo colonizador, ao patriarcalismo, sua moral e
esperanças messiânicas, da ofensiva contra a intelectualidade aí forjada como
imitação da metrópole e submissão ao estrangeiro, e também o indianismo como
purificação das frustrações do colonizado, que imitou o colonizador. A antropofagia
faz as vezes de uma cosmovisão. Sua análise da vida cultural brasileira oferece
as razões para sua atividade política. Ela representa uma teoria de
interpretação do mundo, uma visão congruente com suas próprias leis de modo a
compreender os fenômenos do mundo de maneira imanente, por meio das regras
internas à Antropofagia, num conjunto orgânico (BERRIEL, 1992, p. 130).
Porém, os dois textos que melhor reproduzem o pensamento filosófico de
Oswald são A Marcha das Utopias e A Crise da Filosofia Messiânica,
que servem de coroamento do que vinha construindo desde a Poesia Pau
Brasil, agora em prosa argumentativa.
O CICLO DAS UTOPIAS
Apesar de eu reconhecer a problematicidade em assumir para a academia que
Oswald tenha produzido uma filosofia em sentido estrito, creio não necessitar
de muitos argumentos para justificar uma análise filosófica de sua obra, porque
uma tal abordagem de seu pensamento não é nova. Silvio Gallo, Eduardo Sterzi,
Benedito Nunes e João Cezar de Castro são alguns dos autores contemporâneos que
têm reconhecido haver uma genuína filosofia em Oswald[2].
Sterzi chega mesmo a afirmar, de maneira equivocada, no entanto, que Oswald é
autor da “única filosofia original criada no Brasil”, o que não é verdade, já
que temos uma gama extensa de filósofos brasileiros que produziram uma
filosofia autoral. Para não me alongar cito, e. g. Antonio Vieira, Vicente
Ferreira, Darcy Ribeiro. O fato é que sua obra apresenta aspectos qualitativos
suficientes para figurar na história do pensamento filosófico universal.
De sua vasta produção, possui imediata relevância A Marcha das
Utopias. Neste texto, a análise das utopias responde ao projeto
filosófico-político do autor de entendimento do lugar do Brasil dentro desta
marcha na qual ocupávamos lugar de destaque. Oswald francamente interpreta
fatos históricos sob o olhar estético, e não apenas isto, subordina toda a
política a uma visão estética, pois quaisquer anseios de equanimidade e justiça
não podem ser entendidos senão enquanto respondendo a critérios de harmonia e
proporção, estes eminentemente estéticos. É digno de nota sua participação em
um congresso que também comemorava a invasão da América, em 1944 onde indagava:
“Mas o que procurava Colombo sob as estrelas novas do hemisfério ocidental, onde,
no dizer do poeta, 'a razão humana se perturba e a agulha inventada pelos
homens não sabe mais onde é o norte'?” (ANDRADE, 1944). Por suas palavras se
vislumbra a interpretação histórica em que admite seu pendor estético: “Nada
ele procurava além da liberdade. Era a inocência duma terra 'no sétimo dia da
criação', onde se escoavam ainda as águas do dilúvio e onde, longe das aflições
do pecado, residia a liberdade” (Idem).
O pensamento filosófico-político de Oswald pode ser dito utópico, mas
isso não depõe contra a agudeza e relevância de sua contribuição. Como ele
mesmo afirmou: “no fundo de cada utopia não há somente um sonho, há também um
protesto” (ANDRADE, 1978, p. 194), revelando que toda utopia se mostra
subversiva por expressar um intenso desejo de romper a ordem vigente. Ele
reconhece em “A Marcha das Utopias” um período histórico amplíssimo como
aquele referente ao que denomina “Ciclo das Utopias”. Este vai da
publicação das cartas de Américo Vespúcio no início do século XVI até o
Manifesto Comunista de Marx e Engels no século XIX (Idem, 2011, p. 221).
Período marcado por enormes transformações culturais e históricas, presenciou
as contribuições de Morus, Campanella, Cabet, e experiências como a Comuna de
Paris.
Oswald não inclui aqui a Revolução Haitiana que inicia em 1791, mas esta
figura comodamente como mais uma das experiências históricas que respondiam por
fortes expectativas utópicas, já que os haitianos intencionavam criar a
primeira e única República Negra nas Américas onde economia, política e
religião seriam dirigidas por negros. Esta guerra de independência que foi a
primeira revolta de escravos bem sucedida na história humana, e o primeiro
rompimento com os poderes imperiais europeus, pode muito bem ser parte da
marcha utópica, porque sua implementação exigiria uma tal transformação no
capitalismo colonial que suas bases escravocratas teriam de ser desconstruídas.
Todos os países europeus e os EUA se oporiam, já que pretendia-se a libertação
dos negros na colônia mais rica de então. O inicial sucesso da revolta e a
vitória sobre os exércitos ingleses e posteriormente os de Napoleão, por
incrível que pareça, impressionaram o mundo escravocrata. E, mesmo que muito
fugazmente, desestabilizaram o sistema econômico e sua base escravocrata, já que,
além da independência política, na nova Constituição haitiana feita logo após a
guerra contra os ingleses, liderada pelo haitiano Toussaint L'Ouverture,
instituiu-se o fim da escravidão e a não discriminação pela cor da pele. Este
foi o primeiro documento no mundo a reconhecer a igualdade de direitos de
qualquer etnia, mesmo tendo sido escrito, ironicamente, por escravos negros que
teriam todos os motivos para subjugar os brancos. Nem a Declaração dos Direitos
do Homem na França, nem a Declaração de Direitos dos EUA reconheceram tal
direito, fato que explica por que a escravidão dos negros perdurou legalmente
ainda por longo tempo[3].
Mas, o preço de sua ousadia foi alto. Houve um boicote internacional ao Haiti.
Finalmente tiveram de indenizar os franceses pelas propriedades expropriadas.
E, hoje conhecemos o Haiti como a nação mais pobre das Américas. No entanto, os
motivos para isso são externos ao povo haitiano. Representa o resultado de uma
realização histórica espantosa, de uma tentativa demasiadamente ousada para a
mentalidade primitiva do ocidente.
Segundo Oswald, os pontos altos do Ciclo da Utopias foram a miscigenação
do século XVI, nossa luta no Brasil contra a Holanda no século XVII, a
revolução francesa no século XVIII e a convulsão política de 1848. A luta contra os
holandeses deve sua relevância por ter colocado frente a frente duas
cosmovisões conflitantes: uma a da Reforma, outra a da Contrarreforma. Esse
conflito de modos de vida remonta à Antiguidade, momento em que os judeus criam
o racismo ao se considerarem um povo especial e escolhido por Yawé. Em
contrapartida, é nesse mesmo período que os árabes, povo dado ao contato,
iniciam o que chamamos hoje de miscigenação. Assim, Oswald interpreta a luta
milenar entre árabes e judeus via modos de relacionamento desses povos com
outros a seu redor. Os árabes representariam aquela cultura fecunda e
acolhedora, enquanto os judeus, todas as mazelas do racismo e xenofobia. A
Reforma é um fruto da “árvore judia” porque implementa uma ética aberta à legitimação
do lucro e da usura, a Contrarreforma, da “árvore árabe”, já que reage à
acumulação capitalista capitaneada pelos protestantes calvinistas mormente.
Lutero e Calvino são os rebentos da cultura judia, os jesuítas, desabilitados
pelo Vaticano por sua flexibilidade política, “descendem” dos árabes. E, o
catolicismo só não obteve maior sucesso no Brasil por inabilidade de seus
líderes em extinguir a ordem jesuíta conquistadora de Loyola. Pois, não é
necessário muita destreza discursiva ou profundidade de saber para arrebanhar
centenas em nosso país. Basta apresentar-se como pastor das ovelhas de Cristo
que alguém se vê rodeado de seguidores. Antônio Conselheiro, padre Cícero e,
atualmente, Silas Malafaia, Marco Feliciano, Edir Macedo são exemplos contundentes
da “fé ambulante das massas brasileiras” (Idem, 2011, p. 223).
As utopias refletem a descoberta de um novo ser humano que surge com a invasão
do Novo Mundo. O indígena e sua alegada vida harmoniosa frente à natureza e
comunidade inspiraram os europeus a pensar em possibilidades de sociabilidade
inimagináveis até então. Do contato que travou Thomas Morus, segundo conta, com
um indígena deixado na Feitoria de Cabo Frio por Américo Vespúcio, ele escreve
sobre sua “Utopia” onde conta suas esperanças de construção de uma
sociedade livre das misérias europeias. A concepção de Oswald unifica a
filosofia antropofágica e torna as utopias “sinal de inconformação e prenúncio
de revolta”.
“Princípio e fim, a utopia, no pensamento oswaldiano,
forma o espaço transhistórico onde se projetam 'todas as revoltas eficazes na
direção do homem' – também espaço ontológico, entre o que somos e o que
seremos, entre, diria Oswald, a 'economia do Haver' e a 'economia do Ser'.
Transformando-se, nesse espaço, de impulso biopsíquico em impulso espiritual, o
instinto antropofágico tende à sua própria negação como vontade de poder, na
medida em que ele próprio conduz à utopia, e na medida em que utopia significa
a absorção, na liberdade e na igualdade, da violência geradora dos antagonismos
sociais”. (NUNES, 1978, p. 52, Introdução à Oswald)
A
REVOLUÇÃO CARAÍBA
Oswald distingue os antigos conceitos de Ócio e Negócio,
relacionados respectivamente à Contrarreforma e à Reforma entendendo o Ócio não
como a abstenção da atividade, mas como a ocupação com o tornar-se humano.
Contra Lévi-Strauss, ele defende calorosamente a existência de um pré-histórico
matriarcado universal do qual descenderam os povos periféricos de então, e o
Ócio é um legado desse período que contribuirá para a libertação do humano e
será a indicação mesma do nível ético de vida de um povo. O patriarcado é
recolocado como fenômeno cultural representante do trauma original que marcou o
surgimento da “Civilização”.
Mario Chamie, que aproxima Freud a Oswald, chega mesmo a
reconhecer a transformação do patriarcado em matriarcado como o núcleo temático
da filosofia antropofágica de Oswald (CHAMIE, 2005, p 01). O patriarcado e seus
produtos: o capitalismo, a burguesia, o direito de propriedade do dominador, a
usura, a família nuclear, o pensamento lógico-abstrato, a repressão dos
instintos e da sexualidade; são todos entendidos por nosso autor como
negatividade histórica. O patriarcado se configura como um tabu
encravado na história humana. Somente a implementação de uma nova idade de ouro
iniciada com o matriarcado promoveria a sua substituição. Ao invés do direito
de propriedade, se instauraria o direito de posse do humano primitivo, usura e
o negócio seriam superados pelo ócio, o centralismo de poder daria lugar a uma
vida comunitária “aberta aos prazeres vitais, ditados por uma libido individual
sem censura” (Idem). O matriarcado extirparia o tabu do patriarcado da
história, metamorfoseando-o em totem – em valor humano e em obra de arte
– da nova idade de ouro.
Chegamos, então ao segundo texto eminentemente
filosófico de Oswald, seu ensaio escrito em 1950: A Crise da Filosofia Messiânica. Neste
texto o autor pretende traçar uma esquemática filosofia da história, e para
isso usa os conceitos de Matriarcado e Patriarcado como totalidades
sócio-históricas (NUNES, 1979, p. 59). Oswald reconhece dois modos de vida que
se originaram de cada um destes fenômenos. O Patriarcado teria dado origem à
Civilização e ao messianismo, o Matriarcado à Cultura e à antropofagia. Países
como os EUA já teriam extinguido quase que completamente sua Cultura, enquanto
no Brasil se degladiavam Cultura e Civilização, e, enquanto os índios fossem
dizimados e os negros sofisticados, corríamos o grave risco de perder a
Cultura, que há muitos séculos tenta nos dar um caráter de povo lírico, cordial
e estóico (BERRIEL, 1992, p. 131). Cultura é o que um povo é, sua alma, é
caráter e sentimento, e a ela se conecta a ideia de Pathos. Civilização
é técnica, razão, política, revela o que um povo usa, e expressa o Logos.
Assim, influenciado pela dicotomia já tematizada por Spengler entre Cultura e
Civilização, Oswald elabora sua utopia na construção de um esquema próprio da
história mundial em termos da reordenação conceitual dos primeiros contatos
travados entre a Cultura viva dos ameríndios e a Civilização europeia. O índio
seria capaz de operar uma crítica existencial ao europeu, pois vive o comunismo
como condição própria de sua Cultura. Deste modo, Oswald pensará a relação
entre o Brasil e a Europa em termos de oposição entre a Cultura brasileira e a
Civilização europeia.
Oswald chama tal transformação de Revolução Caraíba, cujo
maior representante seria o humano novo, ainda adverso à degeneração
civilizatória, encontrado pelo europeu. O termo caraíba provém do Tupi Kara
' ib (sábio, inteligente), e deu origem ao nome da região conhecida hoje
como Caribe. Designa o povo falante do grande grupo linguístico que habitava o
norte e nordeste da América do Sul, incluindo-se aí as Guianas, várias ilhas da
América Central e regiões da Amazônia brasileira. Os caraíbas, como passamos a
chamá-los, praticavam a antropofagia, e foram eles que primeiramente inspiraram
Oswald na construção de sua filosofia.
Ainda no texto sobre a filosofia messiânica, Oswald
inclui algumas relações de parentesco como o filho de direito materno, algumas
de produção (a propriedade coletiva do solo) como expressão de realidades
sociais livres e inarmonizáveis com o Estado de classes. Ele pinta um modo
orgânico de vida condizente com a Natureza em que valores vitais são
condensados na atitude antropofágica, que promoveria a transformação do tabu em
totem como modo positivo da práxis aberta aos impulsos primários que não
chegaram a ser reprimidos. Impulsos que alcançariam completa expressão na antropofagia
ritual das sociedades indígenas. O Matriarcado seria uma cultura antropofágica
porque sendo este ritual uma prática básica e livre, apenas o Matriarcado
poderia produzi-lo, pois seu oposto, o Patriarcado, corresponde aos modos de
vida reprimidos, reativos e repressores dos impulsos humanos. O casamento
monogâmico seria expressão desta maneira opressora de encarar os impulsos
naturais para os quais o Matriarcado pretenderia dar vazão orgiástica e
dionisíaca.
O correlato patriarcal da Weltanschauung como
antropofagia no Matriarcado é a cultura messiânica. Este se constitui numa
derivação intelectual da ascendência paterna e do poder do pai sobre seus
filhos. Isto é o que garante o domínio de uma sobre outra classe e a autoridade
política do Estado. Aqui, sob forte influência de Freud, nosso autor assume que
a projeção deste poder que vem do pai para a esfera mais abrangente da
sociedade produz a ideia de uma divindade providencial, de um ser que
potencializa os poderes do pai e se torna criador e conservador da ordem do
universo e da sociedade. Visão esta que grassou nas sociedades que adotaram o
monoteísmo, de onde surge a moral da obediência, posteriormente transformada
após a influência do cristianismo na moral de escravos nietzscheana.
O messianismo é a essência sublimada do Patriarcado e
alcança todas as cosmovisões político-religiosas em que a restauração da vida
alienada depende de um elemento mediador transcendente. As filosofias que
assumem deus ou que, apesar de rejeitando-o, admitirem substitutos para ele são
todas messiânicas. As crises crônicas por que passa tal filosofia só podem ser
superadas na cultura antropofágica, que reintegrará na sociedade tecnicizada as
estruturas originais do Matriarcado (NUNES, 1979, p. 63).
CONCLUSÃO
A Antropofagia corresponde a um dos voos mais ousados já
experimentados por um filósofo brasileiro. A pertinência e relevância das teses
de Oswald exigem que sua obra seja urgentemente analisada, e com justa
seriedade para que dela retiremos as riquezas conceituais que possibilitarão um
melhor posicionamento da filosofia brasileira no mundo. A forma de vida de
nossos índios como, talvez, os últimos representantes do que restou da cultura
do Matriarcado foi colocado por nosso autor como à frente da vida social dos
europeus. Esta é uma reviravolta espetacular na maneira de interpretar a
história universal. Os europeus se tornam o exemplo maior daquela cultura
degenerada e repressora – o Patriarcado – da qual nunca necessitamos, como
reflexo que somos de uma cultura herdeira dos indígenas que precisa ser
assumida em suas mais desconcertantes e profundas expressões (e.g. a
antropofagia). Nosso passado está à frente do sempre lisonjeado futuro da
Civilização capitalista. Oswald revela incrível força de renovação da crítica
social. Enquanto discursos desgastados falam de destruição do imperialismo,
nosso autor advoga a afirmação da Cultura nacional. Em vez de pretender lutar
contra o Estado e a propriedade privada, Oswald propunha a superação do
Patriarcado. Mas, ele não propõe um retorno ingênuo ao passado, mas uma
recolocação do Matriarcado em nossa sociedade tecnicizada. Isto porque a
técnica nos servirá como meio de emancipação. O novo ser humano proposto é o
primitivo tecnicizado que poderá gozar dos benefícios do ócio, da completa
libertação de seus impulsos e da famigerada força transcendente divina que
escraviza tanto mais quanto se assume sua onipotência. Bem como do absurdo da
propriedade privada, forma de relação social apenas suportada pela ignorância
com relação a seus mecanismos e funcionamento.
ADENDO
PROJETO PINDORAMA[4]
Abstraindo-me de furtar-me à tentativa de oferecer uma proposta de
solução para os maiores problemas por que passa nossa sociedade enquanto
espécie, atitude que muitos veementemente interpretam como arrogante e
pretensiosa o suficiente para ser descartada já de início, apresento a seguir
um ensaio do que considero uma tentativa de aplicação dos princípios da
filosofia Ubuntu e do Matriarcado oswaldiano numa possível, e, presentemente,
inexistente associação de pessoas para o convívio pelo bem comum. Acredito
piamente que, caso pretendamos ainda permanecer vivos enquanto espécie,
qualquer receio em se propor alguma alteração radical e benéfica dos rumos da
sociedade é compensada por esforços e ações extremamente eficazes do lado
oposto, em outros termos, o pudor em não pretender propor nada, porque uma
sociedade não se constrói no escritório de um pensador, é contrabalançado nos
escritórios das grandes corporações, que não têm pudor algum em ditar e obrigar
países inteiros a se submeter a suas leis ditas naturais. Aqueles que ainda
pretendem construir uma sociedade minimamente igualitária precisam sim oferecer
um caminho, ainda que não sejam ouvidos, pois os descaminhos já são tantos e
tamanhos que dificilmente se pode ver além do famigerado capitalismo. Não vejo
possibilidade deste projeto se concretizar nos limites do Estado brasileiro ou
de qualquer outro país. Assim, destoo de Oswald em sua tentativa de construção
de um Matriarcado brasileiro. Eu assumiria este projeto como anacional, no
sentido de que não levará os valores específicos de uma nação, mas neste caso
apenas aqueles valores retirados do Brasil não deturpado pela civilização
europeia, a saber, os traços matriarcais de nossa cultura.
Pindorama é um projeto de uma outra humanidade. É a renúncia da crença de
que o ser humano não pode coexistir sem injustiça, de que a desigualdade é uma
pré-condição de nossa existência. Ela pretende concretizar todos os ideais de emancipação
um dia já chamados utópicos numa experiência voluntária de Comunidade em que o indivíduo encontra sua identidade no papel que
exerce para o Todo.
Pindorama é uma comunidade, mas não é parte de qualquer povo na terra.
Também não é um povo, porque não possui estado, religião, ou economia.
Pindorama é uma comunidade de humanos livres corporalmente, intelectualmente,
sexualmente. Cada Comum tem
exatamente o mesmo grau de poder em Realidade, e o descrédito para com as
religiões institucionais é um princípio seu. Lá, elxs não conhecem o dinheiro e
todas as derivações desse meio de intermediar as relações. A Confecção de seus objetos obedece exclusivamente à necessidade de cada Comum. O corpo é a única região para a
qual umx Comum pode dar palavra final.
Seu destino será decidido unicamente por quem vive por ele. Em Pindorama a
crítica e oposição de pensamento são inerentes à sua estrutura, mas rejeita
aquilo que a pode destruir: o egoísmo. Nenhuma restrição encontram xs Comuns para tudo que, compartilhado,
seja praticado sexualmente.
Pindorama é um lugar. Não pertence a país algum. Situa-se no oceano. No
sítio mais distante de quaisquer países, em águas internacionais. Lá não se
fala alguma língua conhecida, mas a Língua
Ubuntu, que será desenvolvida por
sxxs Construtorxs. Uma língua
totalmente livre do machismo, preconceitos, e em constante aperfeiçoamento.
Pindorama é livre de quaisquer leis nacionais ou internacionais. Não tem
obrigação a realizar nada que não se origine de suas próprias decisões em Comunais.
Pindorama tem um número definido de Comuns.
Elxs alcançam o máximo de 500, jamais ultrapassam esse limite porque
acreditam na força das Relações Diretas,
e que não podem manter o laço de contínuo contato com xs demais se a comunidade
crescer. Sua composição obedece a uma justa e permanente distribuição: 50% tem
a capacidade de dar à luz um filho, 50% não. As diversas etnias que comporão
Pindorama terão exatamente a mesma proporção de Comuns. Se forem dez etnias, a proporção será 10% de Comuns para cada uma. Dessa forma, a Organização do Nascimento será uma preocupação central em Pindorama para que não
se criem minorias. Pindorama não pretende substituir a sociedade ocidental que
habita atualmente quase a totalidade do planeta. Objetiva apenas servir de
modelo para uma sociedade autossuficiente em todos os sentidos de modo a
inspirar iniciativas que rompam com a economia fundada no lucro, e que imponham
como limite às nossas ações o exigido equilíbrio com o ambiente.
Xs possíveis primeirxs Construtorxs
de Pindorama serão cuidadosamente estudadxs pelxs iniciadorxs do projeto e
escolhidxs para que seu início não seja desvirtuado e se perca por falta de
cuidados com as ousadas primeiras mudanças radicais. A primeira geração
de Nativxs receberá a Comunificação – formação integral de
quantos potenciais, e no máximo grau possível, já fomos capazes de indicar na
história –, que permitirá uma virada na consciência de espécie para xs Comuns, já que viverão apenas as
experiências comunais, sem qualquer contato, até idade adequada, com o mundo
externo. Após a escolha dxs 500 Construtorxs
iniciais ninguém mais poderá adentrar em Pindorama, sxxs Construtorxs se renovarão transformando-se em Nativxs através da reprodução organizada mantendo ao máximo
possível o limite, e nunca o ultrapassando.
Pindorama será independente do mundo externo. Ela confeccionará o próprio
alimento, roupa, lar, e objetos necessários. Mas, necessidade será um meio para
o benefício do Todo. A
individualidade não existe à parte da Comunidade.
Assim, quase a totalidade dos bens que o mundo externo conhece será
descartada por não responderem a este princípio fundamental de Pindorama. Lá se
confeccionará a energia necessária para todas as atividades. Nenhum bem externo
entrará em Pindorama após a Declaração de
Emancipação, momento em que todo o necessário será confeccionado dentro da Comunidade.
Todxs Comuns participarão da Confecção dos Objetos. Haverá uma parcela de tempo a ser dedicada na confecção
por cada Comum. Após executado o
tempo de Atividade Geral, restará o
período de Atividade Específica, em que x Comum fará o que desejar. O entendimento
aqui é o de que em todo momento se está vivendo pelo Todo, e não há dedicação exclusivamente a si mesmx, porque o
objetivo é alcançar o aperfeiçoamento de todxs. Então, quando umx Comum dorme ou permanece inerte a olhar
o horizonte, elx precisa conceber este momento também como compartilhado, pois
seu prazer fortifica a si e ao Todo.
Não existirá ciência em Pindorama, porque esta é dominação desde sua
origem com a civilização branca. Mas, Teorética,
que será a atividade de penetração do tecido do real para a descoberta de nosso
lugar nele e do que podemos dele retirar sem prejuízo de seu funcionamento,
semelhante ao que praticaram sociedades antigas e indígenas atuais. Construtorxs e Nativxs se entenderão como parcela indissociável do planeta, que
será concebido como umx organismo, portanto, dependente de cada parte para
manutenção do movimento contínuo.
Não haverá líderes em
Pindorama. Nem tampouco, representatividade. Lá se entenderá
que o poder é intransferível, e a tentativa de adquiri-lo de outrem passará por
usurpação inaceitável. Todxs terão acesso às discussões sobre todos os assuntos
que exigirem decisões que atinjam o Todo.
A discussão, portanto, será uma atividade muito presente e contínua em Pindorama. Para
uma decisão ser efetivada serão necessários no mínimo 70% de votos a favor, e
todxs xs 500 Comuns terão o mesmo
tempo de fala para externar sua posição. Assim, será comum e contínua a
realização de Comunais que duram
dias, pois se a cada umx se der 3 min de fala se teria 25h de reunião. Como o
cansaço impede isso, três ou quatro dias seriam suficientes para as questões
menos relevantes. Esta maneira de realizar a Atividade Comum não poderia
ser chamada de democracia porque não há distinções entre povo e governante,
representante e representado, presentes e essenciais ao governo democrático. A
melhor forma de nomear a Atividade Comum
em Pindorama será Polinomia, ou o
governo de todos para todos e por todos.
A Comunificação será uma
atividade da qual todxs serão responsáveis. Umx Nativx terá como comunificadorxs todxs xs Construtorxs, e em
gerações futuras todxs xs Nativxs.
Assim, muitos Círculos de Comunicação serão
realizados diariamente, nos quais haverá sempre umx Iniciadorx que promoverá em conjunto com xs Nativxs as conversas, debates e diálogos necessários à Comunificação. X Nativx escolherá, a partir dos 9 anos, dentre todos os Círculos
diários aquele de que deseja participar sendo reservado o limite máximo de 8
horas e mínimo de 5 horas para estas atividades e Teoréticas que abrangerão: música, teatro, dança, filosofia,
matemática, ginástica, física, biologia, química, sociologia, psicologia,
direito, economia, política, história, medicina, geografia, engenharias,
computação, arquitetura e outras, todas estas adaptadas para que x Nativx não conheça muito cedo o que há
de deturpado nas relações do mundo externo. Antes dessa idade, x Nativx será levadx pelxs Genitorxs para as Casas de Instrução onde
serão iniciados na Língua Ubuntu, na
matemática, na música, ginástica, história, geografia, biologia.
A Língua Ubuntu não terá gênero
em seus substantivos. As palavras não representarão um preconceito de
categorização do humano, que não cabe em dois supostos gêneros contrastantes.
Seus verbos serão todos regulares. Se prezará em sua construção pela riqueza de
vocabulário, de expressões e de estilo, de forma que ela possa traduzir sem
perdas as melhores obras de quaisquer línguas externas. Haverá várias
bibliotecas, uma das quais cada Nativx
só poderá acessar após a idade de aptidão para o conhecimento do estado
degenerado de nossa espécie, a saber, 17 anos, quando todos os valores comunais
já estiverem suficientemente incorporados por elxs.
Após os 17 anos, xs Nativxs acrescentarão à seu cotidiano de Atividade Formativa um período de 3
horas de Atividade Geral, no qual
escolherá uma área relacionada aos estudos em que participava nos Círculos de Comunicação para seguir seu
trabalho pela Comunidade. Não será obrigadx a seguir por toda vida uma única Atividade Geral. Terá liberdade de
migrar para outras áreas, mas sempre respeitando o tempo mínimo de um ano em
cada atividade.
Referências
ANDRADE, José Oswald de Souza. A Utopia Antropofágica: Obras Completas. 4ª Edição. São Paulo:
Editora Globo, 2011.
_____________________Do Pau-Brasil à Antropofagia e às
Utopias: Obras Completas, Vol 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
_____________________. Pau
Brasil: Obras Completas. 2ª Edição. São Paulo: Editora Globo, 2003.
_____________________. Fazedores da América. Conferência
realizada em 30 de outubro de 1944. Originais do Centro de Documentação
Alexandre Eulálio, Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP.
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Revolução Caraíba: A
Utopia Oswaldiana. Itinerários – Revista de Literatura da Unesp, nº 03:
Campinas, 1992.
CHAMIE, Mário. Freud, Oswald
de Andrade e Antropofagia. Revista de
Cultura, nº 43. Fortaleza-São Paulo: janeiro de 2005.
FONSECA, Maria Augusta. Por Que Ler Oswald de Andrade. São Paulo: Editora Globo, 2008.
NUNES, Benedito. Oswald
Canibal. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
[1] Nunes (1979, p. 37).
[2] Cf. o artigo Modernismo e Filosofia: o
Caso Oswald de Silvio Gallo em
“Impulso - Revista de Ciências Sociais e
Humanas”, nº 24 de Abril de 1999, p. 89-108; e o debate entre Eduardo Sterzi e
João César de Castro na mesa “Pensamento Canibal” na Flip em 2011, resumo
disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011 /07/10/oswald-filosofo-radical-por-sterzi-castro-rocha-391406.asp
[3] Cf. Documentário Racism: a History (parte
1: a cor do dinheiro) da BBC de Londres
disponível em:
[4] Os termos escritos com “x” respondem à
preocupação de não reproduzir no texto o machismo presente em nossa linguagem.
Assim, quando aparece elxs, o leitor pode escolher entre ler a palavra como
“elas” ou “eles”. Da mesma forma “construtorxs”, “nativxs”, etc. Este cuidado é
central para o projeto.
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