[Para uma introdução ao tema ver: Acerca da Existência]
A distinção de Heidegger de mundo em
Ser e Tempo - em que “mundo” é também
ente existente ou, como na língua germânica, Dasein[1]
- parece se explicar primariamente pela afirmação de que mundo é o complexo de
significações dadas a partir do e por o ente existente ao que o rodeia e em que ele cada vez já é.
A mundidade (Weltlichkeit) é, na análise
heideggeriana, interpretada como todo-de-remissão da significatividade[2]. Ou,
traduzida de outra forma, mundanidade,
como Ernildo Stein esclarece, é um existenciário do ser-aí (dito aqui como ente
existente); é um conceito ontológico, significando a estrutura de um momento
que constitui o ente existente como ser-no-mundo[3].
O mundo do ente existente põe em liberdade um ente que é diverso do instrumento
e das coisas em geral e conforme o seu modo-de-ser como ser-aí, ou seja, é ele mesmo “no” mundo. Mediante explicação
do mundo ficam também visíveis os restantes momentos estruturais do
ser-no-mundo.
“Mundo é aquilo ‘em que’ o ser-aí
sempre já era, é aquilo para onde já sempre retorna quando vai. O mundo é
essencialmente constituído pelo ser-aí. É o lugar em que todos os entes
encontram significação, mas é, ao mesmo tempo, o lugar em que já se movimenta o
ser-aí que dá sentido aos entes.” (STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. p. 67)
De outro lado, a abertura dos outros entes existentes, previamente
constituída com o ser-com, contribui
para constituir a significatividade,
que tal qual o existenciário mundidade,
se fixa no existenciário “em-vista-de-quê”. Este, por sua vez, é o fundamento
em que o ente existente “em vista de que” é, ele mesmo sempre se referindo a
algo ou alguma coisa ao seu redor, utilizável do mundo-ambiente¸ qualquer ente que o ente existente faz com que se lhe
torne disponível.
“O mundo do ser-aí cotidiano, o
mundo costumeiro, é o mundo ambiente. O mundo que geralmente percebemos é o
mundo ambiente. Os entes com que nos encontramos diariamente não são as coisas
puramente subsistentes, neutras, mas
os entes disponíveis, os utensílios
com uma finalidade determinada.” (STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. p. 66)
A noção heideggeriana de mundo é,
como Stein afirma[4],
inteiramente original. Pois, diferentemente das outras concepções filosóficas
de mundo, apenas o ser humano é ser-no-mundo, por que é ele quem o constitui em
significação, e só é humano porque é no-mundo. Esse mundo não é uma mera soma
dos entes, porquanto, por um lado, o ser humano não se soma a eles, por outro, os
entes puramente subsistentes estão
num mundo não-humano – ou seja, mundidade não existencial, mas categorial. Na
expressão ser-no-mundo, o “no” não indica um lugar circunscrito e não requer
uma espacialidade prévia. Tal expressão tem o sentido do “estar em casa”, o
sentimento de “pátria” e de familiaridade com o que rodeia o ser-aí.
Em contraste, Albert Camus representa, em sua obra O estrangeiro (1942), o absurdo do existir por meio de seu
personagem Meursault. O livro de
mesmo ano, O mito de Sísifo,
explica-o pela gratuidade do estar jogado aí, num mundo estranhado, que não se
pode explicar. Este ser humano privado do sentimento de pátria se sente um estrangeiro.
O ser-no-mundo é, pois, constituição-fundamental do ente existente e por
ela, todo modus do seu ser é
codeterminado. Desdobrado em vários momentos e na sua unidade originária, o
ser-no-mundo é preocupação (Sorge), que por sua vez é o que
determina em geral o ser do ente existente. O ser-no-mundo mostra que não se dá
um mero sujeito sem mundo, e que não há um eu isolado que se dê sem os outros.
O ente existente em sua cotidianidade
não só está em um mundo, contudo se comporta em sua relação ao mundo segundo um
modo-de-ser predominante. O quem do ente existente é respondido pelo
ente que cada vez se é, sendo seu ser cada vez o seu – essa determinação mostra
uma constituição ontológica e uma indicação ôntica, onde esse ente é cada vez
um eu[5],
mero indicador formal.
Porém, pergunta-se Heidegger pelo quem
do ente existente na cotidianidade, já que, como aludido, é o modo de ser em
que no mais das vezes está, ou seja, tomado por seu mundo, absorvido por ele.
Esse é, dentre outros, um momento em que Heidegger apresenta sua proximidade com o
pensamento de Kierkegaard[6],
notadamente na categoria deste de multidão
em contraposição à de Indivíduo.
“A multidão compõe-se, de fato, de Indivíduos; deve estar, portanto, ao
alcance de cada um tornar-se no que é, um Indivíduo; absolutamente ninguém está
excluído de o ser, exceto quem se exclui a si próprio, tornando-se multidão.” (KIERKEGAARD, Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor, p. 102)
A caracterização ontológica do quem
– aquilo que se mantém como idêntico e que se relaciona com a multiplicidade - é
um existenciário, conduzindo a pesquisa que se dirige a esse fenômeno a
estruturas do ente existente de igual originariedade à de ser-no-mundo: ser-com e Dasein-com[7].
“‘Os outros’ não significa algo assim como o todo dos que restam fora de
mim, todo do qual o eu se destaca, sendo os outros, ao contrário, aqueles dos
quais a-gente mesma não se diferencia
no mais das vezes e no meio dos quais a-gente também está. [...] O ‘com’ é um
conforme-ao-Dasein, que ‘também’
significa a igualdade do ser como um ser-no-mundo do ver-ao-redor-ocupado.”
(HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §26; p.
343).
O mundo em que o ente que existe está constantemente jogado, já é cada
vez o que se compartilha com os outros – esse mundo é mundo-com. Desse modo, o ser-em
é ser-com os outros – seu
ser-em-si do intramundano é ser-“aí”-com[8].
O ente em relação ao qual o ente existente se comporta como ser-com, mas não tem o modo de ser do
instrumento utilizável, é ele mesmo. Desse ente ele não se ocupa, se preocupa. Por
essa razão, é preciso que o ser-com
seja interpretado a partir do fenômeno da preocupação (Sorge), ou o que pode ser entendido por outras traduções para o
português como “cuidado”, “curar-se”, “estar na lida”. A ocupação (Besorgen), de
outro lado, é o trato do ver-ao-redor com o utilizável do intramundano.
O ente existente como o se absorver no mundo da ocupação, ser-com relativamente aos outros, não é
si-mesmo. O outro, sendo uma duplicata do si-mesmo, revela uma “ninguendade” em
que ser-um-entre-outros é simultaneamente
ser todos e ser ninguém. A-gente (das Man) ou impessoal é um existenciário
e pertence à constituição positiva do ente existente como fenômeno originário –
de imediato eu não “sou” “eu”, no sentido do si-mesmo-próprio, mas sou os
outros no modo de a-gente. Deste
modo, como similarmente no pensamento de Kierkegaard, é preciso que haja uma
assunção autêntica de si como facticidade, existência e discurso.
“De que modo o ser-aí é
ser-no-mundo? Ao modo do estar-jogado. O ser-aí está inelutavelmente jogado na
existência. Mas o ser-aí assume o estar-jogado no projeto e articula o projeto
do estar-jogado em um conjunto significativo.” (STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger.
p. 67).
O ente existente é aberto para si mesmo própria ou impropriamente. Essa
abertura diz respeito a que esse ser está em
jogo. Aquele torna-se “essencial” (wesentlich) na existência própria que se constitui como o ser-resoluto (Entschlossenheit) precursor – este que é um modo da propriedade da
preocupação, contendo a totalidade originária do ente existente e a originária
estabilidade-de-si-mesmo[9].
O ser-resoluto precursor é o ser-para
(Sein zum) o assinalado poder-ser
mais-próprio. Segundo Heidegger, o deixar-se advir a si na manutenção da possibilidade assinalada é o fenômeno
originário do adveniente ou “futuro”
(Zukunft) – este é o ser para a morte
do ente existente, o qual é propriamente adveniente no adiantar-se em relação a
si e como ente sendo já sempre adveio
a si.
No dizer heideggeriano, revindo a si adveniente, o ser-resoluto,
presencizando, põe-se na situação. A luta de Heidegger para a caracterização da
temporalidade é a mesma da dificuldade da terminologia ontológica. Porém,
observando-se as preposições usadas, tanto do português como do latim e alemão,
pode-se ter maior clareza na exposição do dito. Portanto, o ser que tem
firmeza, que é resoluto, constantemente vindo (revindo) a si direcionado para
o que vem (adveniente[10])
coloca-se ante a... (presencizando[11])
a situação.
A temporalidade possibilita a unidade de existência, factualidade e
decair constituindo originariamente a totalidade da estrutura-da-preocupação.
Assim, preocupação é ser para a morte. Futuro em primeiro lugar de importância,
ser-do-sido e presente são os êxtases (Ekstasen)
ou as estases da temporalidade.
Desse modo, explicita Heidegger[12],
“para...”, “retro...”, “junto...” manifestam a temporalidade como ἐκστατικόν,
ou seja, adjetivo grego relativo a ἔκστασις, proveniente do verbo ἐξίστημι, o
qual, em última análise, literalmente significa pôr fora de si – não é à toa a semelhança com o verbo latino exsistere. É, pois, a temporalidade o
originário “fora de si” em si mesmo e para si mesmo.
“Heidegger constata que o ser-aí sempre é uma totalidade no seu correr
para a morte. O ser-no-mundo é possível, porque o homem sabe que morre. Somos
existência, porque morremos. O correr adiante-para-a-morte ressalta de forma
vigorosa a condição fática, existente, compreensiva do ser-aí.” (STEIN,
Ernildo. Introdução ao pensamento de
Martin Heidegger. p. 69).
No belíssimo filme pós-iugoslavo de Milčo Mančevski Sombras (Senki, 2007), há
a representação de noções comuns quando da reflexão sobre a morte. Tendo como
pano de fundo a história da região dos Bálcãs, região permeada por conflitos e
disputas territoriais e étnicas, o cinema pós-iugoslavo veio à tona como um
palco da dissolução, arquivo de traumas e da imagem da morte. No filme,
“sombras” entram em contato e se entranham na vida de um médico, após este
sofrer um acidente de carro e quase morrer. As superstições e impressões mais
comuns histórico e culturalmente disseminadas sobre a morte são paulatinamente
inseridas.
De forma contrária, Heidegger em sua interpretação existenciária mostra a
morte como possibilidade extrema e indisponível, é a possibilidade-de-ser que o
ente existente tem de assumir cada vez ele mesmo, pela qual está em jogo o seu
ser-no-mundo. Ela se desvenda como a possibilidade mais-própria, irremetente e
insuperável. Sendo o ente existente aberto para si mesmo, esse momento estrutural
da preocupação tem sua concretização
mais-originária no ser-para-a-morte. O
ente existente morre factualmente, enquanto existe, no modo do decair. Esse morrer se funda na
preocupação quanto a sua possibilidade ontológica, preocupação que se desdobra
a partir da verdade do ser[13].
Bibliografia:
CAMUS, A. O
estrangeiro. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
________. O mito de
Sísifo. 3ª Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2006.
Dicionário Latim-Português. 2ª edição. Porto: Porto Editora,
2001.
HEIDEGGER, M. Ser e
Tempo. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes,
2012.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor. Lisboa: Edições 70, 1986.
PEREIRA, Isidro. Dicionário
Grego – Português/Português – Grego. 8ª Ed. Braga, Portugal: Livraria
Apostolado da Imprensa, 1998.
STEIN, Ernildo. Introdução
ao pensamento de Martin Heidegger. EDIPUCRS (Editora da PUC de Porto
Alegre), 2002.
[1]
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §26; p.
343.
[2]
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §26; p.
355.
[3] STEIN,
Ernildo. Introdução ao pensamento de
Martin Heidegger. p. 67.
[4] STEIN,
Ernildo. Introdução ao pensamento de
Martin Heidegger. p. 66-67.
[5]
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §25; p.
333.
[6] Como
também em sua crítica à noção de instante.
Ver nota 2 em HEIDEGGER, M. Ser e Tempo.
§68; p. 919.
[7]
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. p. 331.
[8]
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §26; p.
345.
[9]
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §65; p.
881.
[10] Do
latim a preposição de acusativo ad:
para. Semelhante a zu, de dativo, que
forma no alemão Zukunft.
[11] Do
latim a preposição de ablativo prae:
diante de, em frente de, etc. Que forma praesens,
entis do verbo praesum.
[12]
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §65; p.
895.
[13]
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §50; p.
691.
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