Introdução – “O que é a arte e o
que não é a arte”
Este tipo de expressão em nossa
época pode ser tida até mesmo como uma grande heresia. É o artigo de fé, a
menina dos olhos da “arte contemporânea”, ou “pós-moderna” (ou “pós-histórica”
como o diz Arthur Danto[1]).
A partir do momento em que na Era Industrial o modelo do processo de produção
em série, em larga escala – como lançou mão o conhecido Henry Ford, no início
do século XX -, das indústrias passou a ser modelo para as artes, e estas
bebendo do supra-sumo, da quintessência de sua época, mimetizando os meios de produção, portanto algo com um mimo burguês[2],
presenciamos ou literalmente tropeçamos no que já se questionou como o fim da era da arte. Os meios de
representação tornaram-se o objeto de representação, segundo nos esclarece a
tese de Danto. É uma era “pós-histórica” por a narrativa ter acabado, a
narrativa privilegiada, mas não seu tema – cabe, jogado na pluralidade, ao
artista agir como lhe apraz. Ou ainda, qualquer coisa pode ser arte e qualquer
pessoa, um artista. Reproduzo de forma
semelhante as palavras oraculares e fragmentárias de um ser irascível que
viveu em Éfeso, na Jônia do século VI da Era Anterior. Assim disse Heráclito: τόν
τε Ὅμηρον ἔφασκεν ἄξιον ἐκ τῶν ἀγώνων ἐκβάλλεσθαι καὶ ῥαπίζεσθαι, καὶ Ἀρχίλοχον
ὁμοίως (Fr. DK B42) [3]
O
corrosivo Heráclito
opera em uma incisão, assim como a República
o fará mais tarde, que indica não querer deglutir qualquer coisa sem prévia
seleção – para falar no palavreado de Salvador Dalí[4],
flertando com outro fragmento heraclítico[5]: ὕες
βορβόρῳ ἥδονται μᾶλλον ἢ καθαρῷ ὕδατι (Fr. DK B13). A distinção pelo gosto (ou
paladar) ou por juízo valorativo aqui não nos interessa, nem mesmo uma
distinção essencial. Indo mais a
fundo, a tentativa de diferenciação entre os seres humanos de outros animais
pela arte, ou pela capacidade de produzir imagens
de mundo, ou reproduzi-las, etc., - como parece ter feito Aristóteles em sua Metafísica
- também já não tem uma boa aparência.
Numa época onde a retina se cansa e fica entediada, em meio a uma explosão
midiática auxiliada pela tecnocracia, instaura-se uma proliferação imagética
compulsiva, uma “ditadura do visual” – expressão que Francis Wolff toma de
empréstimo em Por trás do espetáculo: o
poder das imagens[6].
A insurgência de consciência e investigação com relação à capacidade
imaginativa, ou reprodutora de imagens, ou imaginação, desponta na Idade Antiga
– e ainda guia muito das nossas perspectivas de mundo. Em Nascimento de imagens[7],
Jean-Pierre Vernant se detém no pari
passu da pesquisa acerca da definição, encetada pela filosofia platônica,
de “o que é a imagem”.
Da categoria da imagem à imaginação
Platão, já no século IV da Era Anterior, reunira as várias maneiras de
produções imagéticas existentes até então, com o escopo de apresentar uma
teoria geral da imagem. No Sofista,
Teeteto é interpelado pelo estrangeiro de Eléia para que formule uma definição integrada
da essência daquilo que é a imagem (εἴδωλον), e o que há de comum nos objetos
múltiplos que Teeteto nomeia[8].
As produções imagéticas em geral (εἰδωλοποιική), as atividades
fabricadoras de imagem, tanto as artes “plásticas” (pintura, escultura,
estatuária, etc.) como as artes das musas (música, poesia, dança), as artes
“cênicas” (tragédia, comédia) e a sofística pertencem ao âmbito da μίμησις, o
que se pode traduzir, com abertura de sentido, por imitação; ou ainda, ao
domínio da μιμητική, a atividade imitadora. No diálogo República, a μίμησις emerge como εἴδωλον δημιουργία, ou demiurgia
de imagem, pareada com a asserção presente no Sofista: “A μίμησις é qualquer coisa como uma fabricação (ποίησις);
fabricação de imagens, é claro, não de realidades” [9].
Já Xenofonte, de quem Platão segue a via, como mostra Vernant, em Ditos e feitos memoráveis de Sócrates,
submete o vocabulário de μῖμος a certo deslocamento de sentido – como antes era
tratado, principalmente, na comédia -, para se referir também ao trabalho do
pintor e do escultor. Entretanto, Xenofonte o realiza de maneira menos rigorosa
e sem intenção para com um viés teórico.
“Platão dá um passo à frente: atribui a μιμεῖσθαι um valor mais preciso e
de certo modo mais técnico; alarga ao mesmo tempo seu campo de aplicação ao
fazer do ‘imitador’ o traço comum e característico de todas as atividades
figurativas ou representativas. A orientação dessa trama de vocabulário vê-se
assim modificada, o equilíbrio entre os três termos implicados no ato de μιμεῖσθαι
– o modelo, o imitador e o espectador – rompe-se em proveito dos dois
primeiros, entre os quais se fixa doravante a relação de imitação” (VERNANT,
Jean-Pierre, idem, p. 6).
O vocabulário corrente de μιμεῖσθαι, no século V da Era Anterior, era
usado por um lado com o sentido de ludíbrio, o espectador percebia o mímico
remedando aquilo ou quem estava remedando, de outro lado, pela imitação esse
simulador se punha semelhante às maneiras de quem se propôs a mimar. Ao
contrário, Platão, exceto quando o usa em sentidos correntes, coloca ênfase na
relação da imagem com a coisa, fazendo emergir daí o que Vernant chama de ligação de semblância; o que se
explicita é a questão da natureza e da essência do parecer[10].
Anonymous funerary stele for a woman, holding a mirror. Around 425/400 BC.
Exhibited at the Kerameikos Archaeological Museum (Athens). Picture byGiovanni Dall'Orto, November 12 2009.
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“Se pegares um espelho e o mostrares em todas as direções, em um instante
farás o sol e os astros do céu, em um instante a terra, em um instante você
mesmo e os outros animais e os móveis e as plantas e todos os objetos dos quais
falamos ainda há pouco. [...] - E, de certo modo, o pintor também faz uma cama,
não? – Sim, ele diz, uma cama aparente (φαινομένην), ela também” (República, 596 d-e apud VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 7).
O que é conferido à imagem a partir de então é um status ontológico, palavra que deriva de ὄντος, particípio presente
do verbo grego ser (εἰμί), e de λογία, um adjetivo substantivado que se refere
ao domínio do λόγος ou discurso. Portanto, a partir da dialética vem à tona, à
superfície discursiva, o ser da imagem (εἴδωλον). Filha da imitação, ela é a partir da dialética e é “um tal outro” (ἕτερον τοιοῦτον), não é aqui um
ser verdadeiro, mas apenas semelhança (εἰκὼν ὄντως), como
responde Teeteto[11].
Achilles tending the wounded Patroclus (Attic red-figure kylix, ca. 500 BC)
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Kleobis and Biton, kouroi of the Archaic period, c. 580 BCE.
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“‘Segundo objeto igual’, a imagem, sendo de certo modo definida como o
mesmo, depende também do Outro. Ela não se confunde com o modelo, já que,
denunciada como não verdadeira, não real, não traz mais, como no caso do εἴδωλον
arcaico, a marca da ausência, dos outros, do invisível, mas o estigma de um
não-ser realmente irreal [...]” (VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 10).
O que na imagem arcaica
tinha a ver com aparição cede lugar a um parecer,
a uma aparência. Como distingue
Vernant, o interesse não é mais o de uma “análise psicológica”, mas a
determinação do status ontológico da
imagem. Como a imagem é da ordem do parecer, do φαίνειν, ela se faz ver como
aparência do que não é, ela se refere à coisa que imita, manifesta um aspecto
exterior.
Colocando-se em
um ponto de vista contrário ao de alguns autores, como Gilles Deleuze em Lógica do Sentido[13],
Vernant defende a tese de leitura de que a distinção presente no Sofista entre duas formas de produção
imagética não entra em contradição com a afirmação geral formulada na República: “A pintura e a mimética em
conjunto - ὅλος ἡ μιμητική – realizam sua obra longe da verdade” [14]. No Sofista distingue-se duas formas de mimética ou fabricação de
imagens (εἰδωλοποιική): a de cópias-ícones (εἰκόνες), que tem como característica reproduzir as
proporções reais (συμμετρία) de seus modelos; e a de simulacros (φαντάσματα),
aqueles que provocam ilusões para o espectador[15].
Demetria and Pamphile-(Funerary Stele), Athens, 4th c. BC. Kerameikos Archaeological Museum in Athens.
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6th c. BC representation of an animal sacrifice scene in Corinth.
One of the Pitsa panels, the only surviving panel paintings from Archaic Greece.
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So-called "Mycenean lady". Fresco, 13th century BC. From the acropolis at Mycenae.
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Mycenaean Woman (Fresco) ca. 1300 BC
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A φαντασία em Platão não designa a imaginação como faculdade, capacidade
de produção de imagens mentais, porém, um estado do pensamento em que se dá
assentimento espontâneo à aparência de que se vestem as coisas. Como o termo φαντασία
deriva do verbo φαίνειν, parecer, não é de surpreender a ligação da imagem ao
domínio da δόξα, pois este vocábulo vem de δοκεῖν, ou seja, parecer,
assemelhar-se. A φαντασία tem a ver, portanto, com os efeitos que podem ser
ocasionados, ela é aparentada à sensação, αἴσθησις[19].
Decorre disso a preocupação com o tipo de arte e o conteúdo a ser repassado
para os cidadãos na República.
Maenad and satyr. Side A from an Attic red-figure Nikosthenic amphora, ca. 525–515 BC.
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Medea killing one of her sons. Side A from a Campanian (Capouan) red-figure neck-amphora, ca. 330 BC. From Cumae. Ixion Painter
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“Os vários gêneros de μιμήματα, que Platão chama εἴδωλα, εἰκόνες, φαντάσματα, não são
apreendidos em sua dimensão de fatos de consciência. São vistos como produtos
objetivos de certos tipos de arte” (VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 15).
A dissociação
entre μίμησις, imitação, e φαντασία só irá se atestar mais tarde, no
século II da nossa Era, exempli gratia
em Flávio Filóstrato ,
que confere à imaginação até mesmo a capacidade de contemplar o invisível, de
ir além das aparências através do mundo das Formas, e tomando por exemplo
artistas como Praxíteles e Fídias, considera que a μίμησις pode representar
aquilo que viu, mas a φαντασία, por conta de sua σοφία, também o que não viu, o
que Platão somente havia conferido à Filosofia[20].
Roman Seated Zeus, marble and bronze (restored),
following the type established by Phidias (Hermitage Museum).
“about 13 m (42 ft) tall”
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[1] DANTO,
Arthur C. Após o fim da arte – A arte contemporânea e os limites da História.
São Paulo:
Odisseus/Edusp, 2006.
[2] “A
indústria cultural acaba por colocar a imitação como algo de absoluto. Reduzida
ao estilo, ela trai seu segredo, a obediência à hierarquia social. A barbárie
estética consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito
desde que foram reunidas e neutralizadas a título de cultura. Falar em cultura
foi sempre contrário à cultura. O denominador comum ‘cultura’ já contém
virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, classificação que
introduz a cultura no domínio da administração.” (ADORNO, T. e HORKHEIMER, M., Dialética do Esclarecimento. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p. 108)
[3]
Tradução livre: Tanto Homero quanto Arquíloco disse [Heráclito] ser dignos de
ser expulsos dos concursos e surrados com vara.
[4] Por
exemplo em Libelo contra a arte moderna.
[5] Tradução
livre: Os porcos se deleitam mais com a lama do que com água limpa.
[6]
WOLF, Francis. “Por trás do espetáculo: o poder das imagens” in Muito além do espetáculo. Editora do
SENAC: São Paulo, 2005, p. 17.
[7]
VERNANT, Jean-Pierre. “Naissance
d’image” in Religions, histoires,
raisons. Paris: Maspero, 1979, p. 105-137 [“Nascimento de Imagens”,
trad. José Otávio Guimarães].
[8]
PLATÃO. Sofista, 240a 3-5.
[9] República, 599 a 7; Sofista, 265b 1, apud
VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 5.
[10]
VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 7.
[11] Sofista, 240 a-b.
[12] Odisseia, XI, 205-215. É digno de nota
para esse trabalho o emprego de, respectivamente: “ψυχὴν” (205); “σκιῇ” e “ὀνείρῳ”
(207) e “εἴδωλον” (213).
[13]
VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 11, nota 13.
[14]
VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 13.
[15] Sofista, 235 e 6; 236 c 6.
[16] República, 598 b-c.
[17] Sofista, 240 a-b; 264 c-d.
[18]
VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 36.
[19]
VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 19.
[20]
VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 36.