sábado, 18 de outubro de 2014

Brevíssima Introdução à Crítica da Economia Política Moderna


Introdução

Encontra-se na obra História e Consciência de Classe (1923)[1] de Georg Lukács (1885-1971) o texto “A Reificação e a Consciência do Proletariado” (LUKÁCS, 2003, p. 193), caro à Teoria Crítica, que faz a relação entre Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920) e mostra o aspecto sistemático do empreendimento marxiano, da dialética como método de exposição das mediações da sociedade capitalista. A partir de obras como O Capital (1867), há o desdobramento da análise da sociedade capitalista, reconstituindo conceitualmente, tendo como gérmen o conceito de mercadoria – tomada como o protótipo das formas de objetividade e subjetividade. O conceito de mercadoria é tratado aqui de maneira dialética, não como coisa, mas como estrutura.
A caracterização da essência da forma mercadoria é dada em torno da teoria weberiana da racionalização e a teoria marxiana da reificação, e apresentada como coisificação de relações sociais, negligenciada pelo pensamento burguês, que não vê a mediação ideológica daquela forma na vinculação entre subjetividade e objetividade. Marx (LUKÁCS, 2003, p. 193-194), por seu turno, enxerga uma diferença qualitativa (LUKÁCS, 2003, p. 195) entre a sociedade tradicional e as sociedades modernizadas, onde há produção e a circulação em um mercado mundial, processo pelo qual a mercadoria influencia todas as realizações da vida e passa a agir em prol de sua própria justificação, na formação da consciência e do agir social. Não é, pois, de qualquer sociedade que se trata, mas aquela em que a mercadoria se alçou à forma universal (LUKÁCS, 2003, p. 196).
A reificação, portanto, não é um apêndice ao esforço teórico de Marx, mas tem de acompanhar toda a análise em seu impacto sobre a consciência. Se na consciência reificada se ocultam as relações sociais concretas, é dever da crítica dialética recompor o concreto a partir do abstrato, com no mínimo uma teoria da formação dos conceitos. Uma teoria econômica não-marxiana é, conseguintemente, imediatista (LUKÁCS, 2003, p. 211; p. 213).
Aciona-se a partir de Weber, sua tese das afinidades eletivas, segundo a qual os elementos em jogo se influenciam reciprocamente (LUKÁCS, 2003, p. 214). A semelhança é estabelecida entre a empresa capitalista e o aparelho burocrático do Estado. Por conseguinte, Lukács sustenta que o princípio constitutivo da empresa e do Estado na modernidade é o cálculo (LUKÁCS, 2003, p. 215). Em termos de racionalização, mesmo o âmbito jurídico não escapa aos modelos de impessoalidade, formalismo e especialização. Logo, a submissão do sistema jurídico ao cálculo e à abstração, produz uma relação de contemplação do indivíduo frente ao aparato técnico (LUKÁCS, 2003, p. 218).
A burocracia moderna é tomada do ponto de vista de suas formas institucionais (objetividade) e da subjetividade, pelo que se observa que o paradigma de divisão do trabalho penetrou até mesmo na ética (LUKÁCS, 2003, p. 221). O capitalismo na sociedade burguesa, diferentemente de épocas anteriores, produziu uma estrutura unitária de consciência (LUKÁCS, 2003, p. 221), uma mediação completa do sujeito ao objeto através da forma mercadoria; ele se naturalizou como forma imediata de consciência.
Lukács pretende fazer ver nas especificidades do capitalismo de Estado, a necessidade de retorno à dialética materialista, no ponto de crítica à racionalidade abstrata ou identitária. De inspiração hegeliana, expõe-se a tese de que a sociedade civil burguesa é a eticidade cindida em seus extremos (LUKÁCS, 2003, p. 223-224). Em contrapartida, retoma o conceito dialético de totalidade (LUKÁCS, 2003, p. 228), um emaranhado entre facticidade e validade nos processos de modernização.
É destacada aqui a relação entre o processo de racionalização, ou seja, e os efeitos dessa racionalização na metodologia - a perda da imagem da totalidade. Com isso, a ciência moderna mostra-se incapaz de autoconscientização, mostra sua inépcia para apreender o “substrato concreto de realidade” (LUKÁCS, 2003, p. 229).
Lukács mostra que o individualismo metodológico (LUKÁCS, 2003, p. 230-238), as robsonadas como dito por Marx, da economia cai vítima da incapacidade de visualizar totalidade da sociedade, erguendo dessa maneira uma barreira metodológica para a compreensão de crise (LUKÁCS, 2003, p. 231), não estritamente as crises macroeconômicas, mas as máculas deixadas no substrato material pela economia, amparadas em formas abstratas de racionalidade. 
Ainda na obra História e Consciência de Classe, Georg Lukács, no texto “Antinomias do Pensamento Burguês” (LUKÁCS, 2003, p. 240), apresenta as tendências reificantes do pensamento burguês, nomeadamente o racionalismo moderno (LUKÁCS, 2003, p. 246). Ao fazer o diagnóstico dessas tendências, contrapondo-se a elas, mantém operante o conceito hegeliano de experiência, o qual trabalha na reconexão da racionalidade instrumental (formal) a seu substrato material (conteúdo) com uma componente transcendente. Através daquele conceito, pretende-se que com a filosofia não se faça mera epistemologia, mas sim uma crítica radical ao formalismo da ciência moderna, rejeitando-se a reificação que está em suas bases (LUKÁCS, 2003, p. 239). Portanto, relembrar a contraposição imanente é trabalho da dialética.
      Para tanto, Lukács mostra a unilateralidade da filosofia crítica moderna (LUKÁCS, 2003, p. 240), em sua incapacidade de escapar à estrutura reificada da consciência, que se detém apenas na forma, não dando conta, por isso, do estado fragmentado do método. Como, a título de exemplo, a transformação da Metafísica na “Analítica Transcendental”, feita por Kant, este que se revela como a consumação da filosofia moderna, com sua ideia de revolução copernicana, onde o método da construção do objeto, operacionalizado pela física e pela matemática, é passado para a Metafísica.
        “Do ceticismo relativo ao método e do cogito ergo sum de Descartes, passando por Hobbes, Espinosa e Leibniz, o desenvolvimento segue uma linha direta, cujo motivo decisivo e rico em variações é a ideia de que o objeto do conhecimento só pode ser conhecido por nós porque e na medida em que é criado por nós.” (LUKÁCS, 2003, p. 242).

      O fundamento ontológico da ciência e, consequentemente, da filosofia moderna é a reificação do método (LUKÁCS, 2003, p. 243), a própria universalização da forma mercadoria. Kant, por seu turno, faz a equivalência do conhecimento formal e o “nosso” conhecimento. A dimensão do nós – a intersubjetividade compartilhada dos mundos da vida - fica, desse modo, obstaculizada, porquanto pressuposta no sujeito transcendental.
      Ora, o racionalismo moderno surge da desconexão radical entre ciência e vida e, sobretudo, sociedade e história; assim notado no desenvolvimento concomitante entre a filosofia e a ciência moderna, com sua instrumentalização. O conceito de construção, a única estratégia para responder à pergunta de onde repousa a pretensão de validade do juízo sintético a priori, já denota o sintoma da contaminação positivista, que ocasiona a tendência de aproximação entre o método das ciências naturais e as do espírito; já mostra que o mundo moderno se tornou o império do conceito. Como demonstra o diagnóstico weberiano[2], o âmbito da práxis é condenado e rebaixado a um problema técnico, ao contrário do que propunha na antiguidade clássica o pensamento grego pelo qual a técnica era considerada como subordinada à vida política.
        “Podemos igualmente dar como sabido que todo esse desenvolvimento filosófico efetuou-se em constante interação com o desenvolvimento das ciências exatas, e este, por sua vez, interagia produtivamente com uma técnica que se racionalizava cada vez mais e com a experiência do trabalho na produção.” (LUKÁCS, 2003, p. 244).

      Ao expor os dilemas e antinomias do pensamento moderno no âmbito prático, deseja-se, na esteira da Lógica de Hegel, que a necessidade e a carência de ir além do pensamento abstrato provêm da eticidade da sociedade burguesa cindida em seus extremos, donde a necessidade da dialética, que é por tal impulsionada. Esse rebaixamento da prática a questões de técnica conduz a uma cisão irreconciliável entre o racional (o abstrato) e o irracional (o conteúdo), levando ao esvaziamento da sacralidade, bem como à negligência quanto aos fins últimos da existência (LUKÁCS, 2003, p. 245). O argumento de fundo é aqui a reconexão com a totalidade (LUKÁCS, 2003, p. 247), já que o ímpeto do método reificado, incapaz de acessá-la, é uma sistematização coercitiva – em movimento oposto, o irracional, ao ficar extrínseco, faz colapsar essa sistematicidade -, remetendo ao conceito de coisa-em-si. Somente a visualização do sujeito do objeto e vice-versa pode resolver essa equação funesta, acessando a dimensão do nós. Através de sua “Dialética transcendental”, Kant faz ver que a totalidade é inacessível, ao tempo que, já aponta na direção, mais tarde por ele trabalhada, de que ela é necessária e regulativa. A racionalidade moderna expressa o problema mais fundamental da lógica: a impossibilidade de ligar os conceitos ao conteúdo. É por essa razão que Kant, em sua terceira Crítica, precisa reconhecer uma legalidade do contingente[3], ou uma contingência inteligível, um sistema coerente de leis empíricas (LUKÁCS, 2003, p. 250).
“Mas já se vê claramente, a partir do que foi exposto até aqui, o que significa o problema do dado para o sistema do racionalismo: é impossível que o dado seja deixado em sua existência e em seu modo de ser, pois, nesse caso, permaneceria inelutavelmente ‘contingente’; ele tem de ser integralmente incorporado ao sistema racional dos conceitos do entendimento. [...] A primeira alternativa é o conteúdo ‘irracional’ se integrar totalmente ao sistema de conceitos. [...] A segunda alternativa é o sistema ser obrigado a reconhecer que o dado, o conteúdo, a matéria, penetram na elaboração, na estrutura e nas relações das formas entre si; penetram, portanto, na estrutura do próprio sistema de maneira determinante.” (LUKÁCS, 2003, p. 253).

Ao modo das ciências matemáticas, a produção do objeto de conhecimento, em sua componente meramente formal, faz eclipsar o conteúdo. Esse “produtivismo”, como irá criticar Adorno mais tarde, é o princípio autocrático da racionalidade formal[4]. De outro lado, o ideal da dialética materialista é superar a dualidade sujeito-objeto, compreendendo a diferença na identidade. Para Kant, a essência concreta do sujeito-objeto idêntico é somente visualizada na ação moral, sua ética institui o primado da razão prática, que tem mais reivindicações, sobre a razão teórica. Porém, a crítica de Kant fica condicionada a um subjetivismo, pois é talhada à medida da consciência individual; como filosofia prática, não supera o individualismo metodológico nem o âmbito da mera contemplação, porquanto sucumbe à interiorização (LUKÁCS, 2003, p. 263-265).
“O princípio da prática como princípio da filosofia só é encontrado realmente, portanto, quando se indica ao mesmo tempo um conceito de forma, cuja validade não tenha mais como fundamento e condição metodológica essa pureza em relação a toda determinação de conteúdo, essa pura racionalidade. O princípio da prática, enquanto princípio de transformação da realidade, deve então ser talhado na medida do substrato material e concreto da ação, para poder agir sobre ele quando entrar em vigor.” (LUKÁCS, 2003, p. 267).
Assim, a necessidade de enunciar diferentemente os princípios da lógica formal vem da própria eticidade, o que conduz à práxis é a dialética dos conceitos em movimento (LUKÁCS, 2003, p. 269), a tessitura dos mundos da vida a que Hegel dará voz em sua Lógica.
A situação paradoxal da era moderna é, então, traçada por Lukács. Centrado no construtivismo, o mundo burguês se despede da transcendência como recurso teórico, já que os problemas deixam de transcender o ser humano, voltando-se para sua utilidade prática instrumentalizada. Mas, por outro lado, a própria reificação metodológica do individualismo solapa seus pressupostos, suprimindo o caráter ativo da ação social.
“O aspecto fundamental dessa situação já foi realçado várias vezes por nós: o homem da sociedade capitalista encontra-se diante da realidade ‘feita’ – por si mesmo (enquanto classe) -, como se estivesse em frente a uma ‘natureza’, cuja essência lhe é estranha; está entregue sem resistência às suas ‘leis’, e sua atividade consiste apenas na utilização para seu proveito (egoísta) do cumprimento forçado das leis individuais. Mas mesmo nessa ‘atividade’, permanece – pela própria natureza da situação – objeto e não sujeito dos acontecimentos.” (LUKÁCS, 2003, p. 284).

Acometido pelas patologias metodológicas do construtivismo crítico que ele próprio teceu, o mundo burguês tenta conciliar com promessas a cisão instaurada em sua eticidade, por exemplo, com a Arte. A sociedade moderna, de outro lado, autonomizou a Arte, mas ao mesmo tempo a neutralizou, ao submetê-la à reprodutibilidade técnica[5]; o que suscita o paradoxo entre a perda de seu valor de culto e a necessidade de autenticidade. O princípio da arte, que revela o desejo pela construção de uma totalidade concreta, a manifestação do sujeito-objeto idêntico, tal qual a comunidade entre produtor e produto, desvenda assim o “segredo” da relação paradoxal da modernidade com a obra de arte (LUKÁCS, 2003, p. 287). Entretanto, a obra de arte perdeu sua conexão com a práxis, presa de um individualismo metodológico ao qual ela deve sua autenticidade; o que resulta na inviabilidade da saída burguesa pela arte, porquanto se mostra como um caráter meramente contemplativo (LUKÁCS, 2003, p. 293).
“A gênese, a produção do produtor do conhecimento, a dissolução da irracionalidade da coisa em si e o despertar do homem amortalhado concentram-se doravante, portanto, na questão do método dialético. Nele, a exigência do entendimento intuitivo (da superação do método, relativa ao princípio racionalista do conhecimento) assume uma forma clara, objetiva e científica.” (LUKÁCS, 2003, p. 295).

O que possibilita Lukács observar quanto ao método de Hegel - que, por seu conceito de experiência reconduz a noção de práxis a uma prática compartilhada (a um nós) -, que, com seu conceito de saber absoluto, ocasionou uma mistificação do conceito (LUKÁCS, 2003, p. 307), parando aquém de si mesmo e reificando o método como extrínseco à contradição, porque procurou retirar o conceito do estilhaço da história. Nesse sentido, é preciso se atentar à obra marxiana, que entende a filosofia como prática social transformadora, operada por um nós, o proletariado, que deve se reconhecer como tal e assim, portanto, agir (LUKÁCS, 2003, p. 308).

Os Manuscritos de 1844

A tese com a qual Marx trabalha em sua obra, focando-se aqui sobretudo nos chamados “Manuscritos de 1844” [6], é a de que trabalho estranhado é uma necessidade antropológica: o ser humano só se realiza na medida em que se vê refletido no objeto de sua atividade. Na esteira de Rousseau[7], o moderno conceito de autonomia significa o sujeito ser capaz de determinar a partir de si suas próprias leis, ter diante de si não um Outro, mas si mesmo refletido no objeto através do trabalho[8]. A sociedade moderna ocidental, ao contrário, de maneira estrutural e sistemática, se apropria indevidamente do produto do trabalho. Até o século XVII, vigorava no âmbito teórico uma compreensão aristotélica da economia, sendo esta a ciência das regras que regulam a esfera da vida doméstica da produção (ο οἴκος, a unidade produtiva), em contraposição à política, na esfera nacional ou da πόλις. O que se constata nos processos de modernização no Ocidente é, de outro lado, a gradual cisão entre o aparelho burocrático do Estado e a denominada “sociedade civil burguesa”, a esfera social despolitizada, regulamentada pela economia nacional, em completa tensão ou contradição com o Estado[9]. Dessa forma, Marx realiza uma crítica imanente da economia nacional com o fito de expor suas contradições, ou seja, desvendar o estranhamento (Entfremdung) como alienação ou expropriação (Veräusserung), fruto da “des-exteriorização” (Entäusserung) que faz com que o trabalhador esqueça de sua exteriorização no trabalho como seu[10].
A atividade produtiva, o trabalho, é o princípio gerador da economia nacional. Apenas a economia nacional se compreendeu como produto da energia e dinâmica interna da propriedade privada, a riqueza em seu movimento, ao contrário dos fisiocratas ou mercantilistas, de forma estática[11]. Por outro lado, é preciso mostrar sua unilateralidade, a qual continua a pretender um mundo natural, a-histórico, sendo ela mesma – enquanto processo de esclarecimento, secularização - o momento que proporciona uma compreensão histórica, moderna do ser humano sobre si (MARX, 2004, p. 99-100). A economia nacional, por sua vez, apenas enuncia a propriedade privada, mas não a expõe (MARX, 2004, p. 88). Adam Smith, o “Lutero nacional-econômico”, como chamou Engels, estabeleceu uma cientificidade secularizada que possibilitou uma compreensão da essência subjetiva da riqueza, no interior da propriedade privada, não como as relíquias sagradas ou fetiches (exteriores) do paganismo católico, mas como produto do próprio trabalho (MARX, 2004, p. 99).
A sociedade moderna, que começa por prometer a emancipação individual, termina por escravizar sistematicamente, imbuída em uma nova mitologia, um novo Deus: o Capital – a autovalorização do valor, o único sujeito livre[12]. A efetivação do trabalho estranhado se dá nessa relação social assimétrica, em uma forma específica de dominação, na qual o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, mas a um outro, que possa fruí-lo e ser-lhe senhor. Desse modo, a propriedade privada, coisa dotada de valor de troca, não é epifenômeno do trabalho estranhado, contradição entre trabalhador e trabalho, mas sua decorrência lógica. A contradição da propriedade privada, portanto, é a autocontradição do trabalho estranhado (MARX, 2004, p. 87-88).

O Capital – Crítica da Economia Política

A forma mercadoria é forma mais imediata que aparece na sociedade civil burguesa, estruturando todas as formas no mundo capitalista moderno[13]. Unidade de determinações contraditórias, entre qualidade (trabalho concreto) e quantidade (trabalho abstrato), entre o valor de uso e o valor de troca, a mercadoria não pode ser tratada como uma “substância individual”, à maneira atomista, já que não aparece sozinha, mas em um contexto.
“Uma coisa pode ser valor de uso, sem ser valor. É esse o caso, quando a sua utilidade para o homem não é mediada por trabalho. Assim, o ar, o solo virgem, os gramados naturais, as matas não cultivadas etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Quem com seu produto satisfaz sua própria necessidade cria valor de uso mas não mercadoria. Para produzir mercadoria, ele não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de uso social.” (MARX. 1985, p. 49).

É já uma passagem do uno ao múltiplo, é já ela mesma uma totalidade, uma coisa “cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas” (MARX. 1985, p. 70). Por ser a forma mais imediata, a mercadoria é o que aparece inicialmente como o mais carente de determinações, tornando-se rica somente quando o capital se mostra em si e para si como processo: em si como substância e para si como sujeito – a forma refletida da mercadoria, que coloca para fora as determinações que nela estão em germe: a forma dinheiro (MARX. 1985, p. 70). É preciso, portanto, lançar mão do método dialético como método de apresentação do capital, como método para crítica da Economia Política, explicitando, na lida com os conceitos, as categorias econômicas forjadas e determinadas historicamente[14].
A mercadoria, a quem se debruça sobre seu conceito, suscita, pois, uma passagem da trivialidade à perplexidade. Enquanto valor de uso, algo para satisfação de necessidades, é algo morto, passivo, não impõe complicações. Porém, enquanto valor de troca torna-se algo vivificado, ativo. O caráter místico da mercadoria – ou seja, o caráter de um ser inanimado como que ressuscitado em um novo animismo nesse processo de esclarecimento que é o capitalismo - não provém do valor de uso nem do valor, da forma do valor, que provém da objetivação do trabalho na mercadoria. Esse caráter, diz Marx, provém da própria forma mercadoria (MARX. 1985, p. 71).
“O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. Por meio desse quiproquó os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas físicas metafísicas ou sociais.” (MARX. 1985, p. 71).

A mercadoria é algo uno em sua relação intrínseca com o múltiplo, ou seja, só é mercadoria se houver mais de uma; é, portanto, valor de uso que impõe uma relação de igualdade (trabalho abstrato) entre trabalhos privados, dependente da totalidade do trabalho social. O enigma reside no fato de que as características sociais desse sistema de produção de valores contribuem para o encobrimento dessas relações. A abstração dos trabalhos diferenciados naturalizou a normatividade dessas relações sociais tal qual a lei da gravitação[15]. O fetiche, o animismo que a mercadoria adquire na dimensão da produção, e seu enigma são, pois, facetas de um mesmo processo social, que tem seu ápice na coisificação das relações sociais, na tendência estrutural de naturalizar o valor de troca.
“A Economia Política analisou, de fato, embora incompletamente, valor e grandeza de valor e o conteúdo oculto nessas formas. Mas nunca chegou a perguntar por que esse conteúdo assume aquela forma, por que, portanto, o trabalho se representa pelo valor e a medida do trabalho, por meio de sua duração, pela grandeza do valor do produto de trabalho. Fórmulas que não deixam lugar a dúvidas de que pertencem a uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e ainda não o homem o processo de produção, são consideradas por sua consciência burguesa uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo.” (MARX. 1985,  p. 76)[16].

O método do pensamento burguês é acometido, desse modo, pela mesma reificação de que são vítimas as relações sociais na sociedade capitalista. Tomada apenas como valor de troca, a forma mercadoria é abstraída de suas qualidades, de seu valor de uso, bem como o trabalho nela empregado. O resultado dessa equação perniciosa, em que prevalece na consideração o elemento quantitativo em detrimento do qualitativo, é uma relação social entre coisas e relações reificadas - que têm de ser perpassadas pela forma mercadoria - entre pessoas. A sociedade civil burguesa é, portanto, a sociedade das mercadorias, em que estas, as mercadorias, acabam por se tornar “hieróglifos sociais” (MARX. 1985, p. 72), e, já que nelas está objetivado o trabalho social total, gelatina de trabalho não especificado (MARX. 1985, p. 47), o que se vê na mercadoria aparece para nós como feitiço – fruto do processo social de abstração dos trabalhos concretos, dispêndio de cérebro, nervos, músculos humanos (MARX. 1985, p. 51; p. 70).
“A figura do processo social da vida, isto é, do processo da produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado.” (MARX. 1985, p. 76).

Para o desvendar dialético dos segredos do lucro e do enigma do dinheiro, Marx enuncia (MARX. 1985, p. 79-80) a consequência institucional do fetichismo da mercadoria em seu reflexo jurídico pela via do contrato privado de trabalho, fundado no reconhecimento recíproco dos negociantes no mercado, do qual o direito privado burguês é a forma de fachada, na qual está contida a mercadoria e nesta a equivalência geral do valor de troca. Ora, o contrato requer esse reconhecimento recíproco mediado pela igualação na troca, que, do ponto de vista de como aparece, na “esfera ruidosa” do mercado (MARX. 1985, p. 144), é justa. Ao contrário, à medida que isso se desvenda, essa aparência revela-se como fruto da ideologia da “livre” troca de “equivalentes”: uma liberdade puramente formal, pela qual o que é trocado produz mais valor, oculto nessa relação assimétrica, do que se estaria disposto a negociar.
Na inconstância do processo de troca, que não permite que se fixe apenas um aspecto isolado - pois ao fazê-lo se é imediatamente remetido para outro -, a mercadoria, que é indiferente ao conteúdo, opera a metamorfose do uno para o múltiplo, da identidade para a diferença. Necessário é, para dar conta dessa fluidez, suspender (aufheben) essa inconstância, colocando-se no ponto de vista da unidade: o dinheiro. A perplexidade dos possuidores de mercadorias, que pensam como o Fausto de Goethe diante dessa inconstância – “No começo era a ação”  (MARX. 1985, p. 80-81) -, já foi solucionada na prática pela ação humana, uma mediação social que sumiu sem deixar vestígios (MARX. 1985, p. 84). Assim, o enigma do dinheiro é a forma mais viva do fetiche da mercadoria (MARX. 1985, p. 85), que só quer o imediato – instável, o insustentável para a dialética.
“O cristal monetário é um produto necessário do processo de troca, no qual diferentes produtos do trabalho são, de fato, igualados entre si e, portanto, convertidos em mercadorias. A ampliação e aprofundamento históricos da troca desenvolvem a antítese entre valor de uso e valor latente na natureza da mercadoria. A necessidade de dar a essa antítese representação externa para a circulação leva a uma forma independente do valor da mercadoria e não se detém nem descansa até tê-la alcançado definitivamente por meio da duplicação da mercadoria em mercadoria e em dinheiro. Na mesma medida, portanto, em que se dá a transformação do produto do trabalho em mercadoria, completa-se a transformação da mercadoria em dinheiro.” (MARX. 1985, p. 81).

Seguindo a via da lógica dialética hegeliana, ao utilizar o método de análise, no sentido mercadoria e sua troca em dinheiro, Marx expõe que as tentativas anteriores de analisar a mercadoria de forma una e isolada falharam, já que não pode ser tomada como um fator isolado, é uno e múltiplo, é também troca, é também dinheiro, que é a forma consumada da troca e não tem valor de uso. Pelo método de síntese, começa-se pelo dinheiro, mostra-se que o dinheiro é o elemento imediato que põe seus momentos enquanto heterogêneos, não contendo em si mercadoria e troca, mas implicando-os.
“O ciclo M — D — M parte do extremo de uma mercadoria e se encerra com o extremo de outra mercadoria, que sai da circulação e entra no consumo. Consumo, satisfação de necessidades, em uma palavra, valor de uso, é, por conseguinte, seu objetivo final. O ciclo D —M — D, pelo contrário, parte do extremo do dinheiro e volta finalmente ao mesmo extremo. Seu motivo indutor e sua finalidade determinante é, portanto, o próprio valor de troca.” (MARX. 1985, p. 127).

Para compreender a transformação do dinheiro em capital, há que se expor a necessidade conceitual de transitar para a esfera da produção, o essencial, em contraposição à esfera da circulação, a aparência, suscitada na e pela arena ideológica burguesa, com a ilusão da livre e justa troca de equivalentes, alicerçada em seu direito privado. Assim como aparece na esfera da circulação, capital é gerado na própria circulação a partir do dinheiro.
“O valor torna-se, portanto, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital. Ele provém da circulação, entra novamente nela, sustenta-se e se multiplica nela, retorna aumentado dela e recomeça o mesmo ciclo sempre de novo. D — D’, dinheiro que gera dinheiro — money which begets money —, diz a descrição do capital na boca dos seus primeiros tradutores, os mercantilistas. De fato, portanto, D — M — D’  é a fórmula geral do capital, como aparece diretamente na esfera da circulação.” (MARX. 1985, p. 131).

A passagem da circulação para a produção, quebra a fantasmagoria causada pela ideologia, mostrando as contradições de sua fórmula geral – ou seja, das tentativas de a circulação ser a fonte de mais-valia (MARX. 1985, p. 133) - e expondo a relação assimétrica, contida na dialética do senhor e escravo, na qual está o passo essencial para gerar a auto-valorização do valor, o capital: o trabalho excedente e, portanto, mais-valia (MARX. 1985, p. 128) -a expropriação, feita pelo proprietário dos meios de produção, do trabalho alheio, do proprietário da força de trabalho, o trabalhador.
“O processo de consumo da força de trabalho é, simultaneamente, o processo de produção de mercadoria e de mais-valia. O consumo da força de trabalho, como o consumo de qualquer outra mercadoria, ocorre fora do mercado ou da esfera de circulação. Abandonemos então, junto com o possuidor de dinheiro e o possuidor da força de trabalho, essa esfera ruidosa, existente na superfície e acessível a todos os olhos, para seguir os dois ao local oculto da produção, em cujo limiar se pode ler: No admittance except on business.” (MARX. 1985, p. 144).

Pela via de análise de Bentham, na esfera da circulação tudo se encaminharia como uma “harmonia pré-estabelecida” (MARX. 1985, p. 145), onde a mão invisível do mercado – na esteira aqui de Adam Smith - regularia o interesse universal, e cada um defendendo seu interesse privado formaria esse resultado, o bem comum. Já Hegel mostrara em sua obra Princípios da Filosofia do Direito, que aderir a tamanha ingenuidade somente poderia resultar na morte da vida política[17]. Aquela assimetria, a base oculta da sociedade capitalista, onde o fenômeno, o que aparece, está sobreposto à essência, apenas à dialética é dado reconhecer.


[1] LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[2] Como esclarece Habermas: “A política de estilo antigo, já pela própria forma de legitimar a dominação, era levada a se determinar em relação aos fins práticos: as interpretações do ‘bem-viver’ eram dirigidas para as contexturas de interação. Isso vale também para a ideologia da sociedade burguesa. Por outro lado, o programa de substitutivos hoje dominante é voltado tão-somente para o funcionamento de um sistema dirigido. Ele exclui as questões práticas e, com isso, a discussão sobre aceitação de padrões que só seriam acessíveis a uma formação democrática da vontade. A solução de tarefas técnicas não depende de discussão pública.” (HABERMAS, J. “Técnica e ciência enquanto ‘ideologia’”; V, p. 330. In: Pensadores. São Paulo: 1980)
[3] KANT, I. Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos. In: Pensadores, Editora Abril Cultural, 1974; p. 274.
[4] “[...] a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba. Ela é usada como um instrumento universal servindo para a fabricação de todos os demais instrumentos.” (ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Jorge Zahar Editora: Rio de Janeiro, 2006; p. 37)
[5] Ver BENJAMIN, W. “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução” In: Pensadores. São Paulo: 1980.
[6] MARX, Karl. “Trabalho Estranhado e Propriedade Privada”. In: Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2004.
[7] Ver, por exemplo, MARX, K. A Questão Judaica, §94.
[8] “O homem é um ser genérico (Gattungswesen), não somente quando prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas também [...] quando se relaciona consigo mesmo como [com] um ser universal, [e] por isso livre.” (MARX, 2004, p. 83-84).
[9] Ver MARX, K. A Questão Judaica, §52.
[10] “A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa (äussern), mas, bem além disso, [que se torna uma existência] que existe fora dele (ausser ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha.” (MARX, 2004, p. 81).
[11] MARX, Karl. “Propriedade privada e Trabalho”. In: Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2004; p. 99.
[12] “Sob aparência de um reconhecimento do homem, também a economia nacional, cujo princípio é o trabalho, é antes de tudo apenas a realização consequente da renegação do homem, na medida em que ele próprio não mais está numa tensão externa com a essência externa da propriedade privada, mas ele próprio se tornou essa essência tensa da propriedade privada. O que antes era ser-externo-a-si (sich Äusserlichsein), exteriorização (Entäusserung) real do homem, tornou-se apenas ato de exteriorização, de venda (Veräusserung)” (MARX, 2004, p. 100).
[13] MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. 2ª Ed. Volume I. São Paulo: Nova Cultural, Col. Os economistas, 1985; p. 45.
[14] “[...] o problema da mercadoria não aparece apenas como um problema isolado, tampouco como problema central da economia enquanto ciência particular, mas como o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais. Pois somente nesse caso pode-se descobrir na estrutura da relação mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa.” (LUKÁCS, Georg. A Reificação e a Consciência do Proletariado. In: História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, p. 193).

[15] “É mister uma produção de mercadorias totalmente desenvolvida antes que da experiência mesma nasça o reconhecimento científico, que os trabalhos privados, empreendidos de forma independente uns dos outros, mas universalmente interdependentes como membros naturalmente desenvolvidos da divisão social do trabalho, são o tempo todo reduzidos à sua medida socialmente proporcional porque, nas relações casuais e sempre oscilantes de troca dos seus produtos, o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção se impõe com violência como lei natural reguladora, do mesmo modo que a lei da gravidade, quando a alguém a casa cai sobre a cabeça.” (MARX. 1985, p. 73).

[16] Comparar análise dos escritos de 1844, em que ainda se usava a expressão economia nacional: “A economia nacional parte do fato dado e acabado da propriedade privada. Não nos explica o mesmo. Ela percebe o processo material da propriedade privada, que passa, na realidade (Wirklichkeit), por fórmulas gerais, abstratas, que passam a valer como leis para ela. Não concebe (begreift) estas leis, isto é, não mostra como têm origem na essência da propriedade privada.” (MARX, Karl. “Trabalho Estranhado e Propriedade Privada”. In: Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2004; p. 79.)
[17] Cf. §§ 185-188. “A economia política é a ciência que neste ponto de vista tem o seu ponto de partida e que, portanto, deve apresentar o movimento e o comportamento das massas em suas situações e relações qualitativas e quantitativas. É ela uma das ciências que nos tempos modernos surgiram como em seu terreno próprio. Demonstra o seu desenvolvimento (e aí reside o interesse dela) como o pensamento (cf. Smith, Say, Ricardo) descobre, na infinita multiplicidade de minúcias que se lhe apresentam, os princípios simples da matéria, o elemento conceitual que os impele e dirige. Se constitui um fator de conciliação descobrir no domínio das carências esse reflexo de racionalidade que pela natureza das coisas existe e atua, também é esse, inversamente, o domínio onde o intelecto subjetivo e as opiniões de moral abstrata desafogam a sua insatisfação e azedume moral.” (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo : Martins Fontes, 1997; §189, Nota).

sexta-feira, 14 de março de 2014

Breve início ao Trabalho da Dialética Negativa

Em sua obra Dialética do Esclarecimento[1], Adorno e Horkheimer fazem ver o processo de esclarecimento como um projeto que procura emancipar o ser humano através do desencantamento do mundo, substituindo a intuição pelo conceito. Processo que bem se destaca na modernidade na passagem citada pelos autores em que Bacon, ao propor um “casamento feliz” entre o intelecto e a natureza, já realizaria assim um casamento patriarcal, que já provém de um desencantamento, um esgotamento da conexão e da sedução mítica; na esteira de Lukács, é essa a indiferença com relação ao conteúdo que marca racionalidade formal, o que possui uma intimidade visceral com a maneira pela qual o capital produz e se reproduz[2].
“A dominação da natureza traça o círculo dentro do qual a Crítica da Razão Pura baniu o pensamento. Kant combinou a doutrina da incessante e laboriosa progressão do pensamento ao infinito com a insistência em sua insuficiência e eterna limitação. Sua lição é um oráculo. Não há nenhum ser no mundo que a ciência não possa penetrar, mas o que pode ser penetrado pela ciência não é o ser.” (Idem, p. 33)
Como a ciência tudo constrói, nada lhe escapa como genuinamente outro, o esclarecimento segue o caminho pela extirpação do não-idêntico. De outro lado, a liberdade kantiana já tende para um comportamento adaptativo[3], assim como o “mito do dado”, fomentado pelo pensamento positivista, que reduz a condição racional à pura e simples autoconservação. Tal como é feita a correlação entre o esquematismo transcendental e a teoria da mediação do valor, como semelhantemente enunciada por Lukács[4], o que caracteriza de antemão o estado de calamidade triunfal e a falência da crítica, no qual resplandece o mundo totalmente esclarecido.
“O trabalho social de todo indivíduo está mediatizado pelo princípio do eu na economia burguesa; a um ele deve restituir o capital aumentado, a outro a força para um excedente de trabalho. Mas quanto mais o processo de autoconservação é assegurado pela divisão burguesa de trabalho, tanto mais ele força a auto-alienação dos indivíduos, que têm de se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica. Mas isso, mais uma vez, é levado em conta pelo pensamento esclarecido: aparentemente, o próprio sujeito transcendental do conhecimento acaba por ser suprimido como a única reminiscência da subjetividade e é substituído pelo trabalho tanto mais suave dos mecanismos automáticos de controle.” (ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Idem, §16, p. 36)
A regressão da racionalidade ao intelecto autocrático implica a subordinação das vivências ao âmbito do comunicável e seu deplorável empobrecimento. Na trajetória da mitologia à logística, os sujeitos perdem a dinâmica da reflexão sobre si, bem como a capacidade de reconhecer no outro os efeitos do recrudescimento sobre si próprio, a consciência perde a capacidade crítica de estranhamento e reconhecimento[5]. A falência da crítica se mostra no caráter obsoleto da razão sob a sociedade racionalizada. Sem a negatividade do conceito resta apenas a intuição mística das coisas, não há aquela relação paradoxal de estranhamento do objeto pela consciência, que abre, por seu turno, a capacidade crítica, dinâmica de que depende a dialética. É o que deve proporcionar o acesso pelos conceitos para além dos conceitos, ir com o esclarecimento para além dele: a natureza que se revela em sua face multilada – diretriz na Dialética Negativa de Adorno, de sua teoria crítica de racionalidade, a qual pretende que a natureza chame de novo a si mesma pelo nome[6].
Os autores veem como modelo crucial para visualização da dialética do esclarecimento, em seus primórdios, o episódio das Sereias, presente no canto duodécimo da Odisseia homérica, porquanto a partir dele é possível ver na estruturação das vivências, no espaço temporalizado, a possibilidade de experiência, aquilo que pode ser comunicável, ou seja, posto em categorias[7].
“Esse entrelaçamento de mito, dominação e trabalho está conservado em uma das narrativas de Homero. O duodécimo canto da Odisseia relata o encontro com as Sereias. A sedução que exercem é a de se deixar perder no que passou. Mas o herói a quem se destina a sedução emancipou-se com o sofrimento. Nos perigos mortais que teve de arrostar, foi dando têmpera à unidade de sua própria vida e à identidade da pessoa.” (Idem, §17, p. 38)
É a formação do intelecto autocrático, os processos de formação do “eu”, através do auto-apoderamento, que permite exercer o poder de mando sobre si e domínio sobre o exterior. A temporalização, submissão do vivencial e do singular a estruturas abstratas, é o que abre o âmbito da experiência compartilhada, que pode se transformar em saber praticável. É aquilo que marca a passagem para a civilização e para a História.
O que a sedução das Sereias pode acarretar é o esfacelamento da ordem patriarcal: condição de possibilidade da civilização, a rígida hierarquia que ocasiona o “eu”, a intersubjetividade e as relações de domínio e repressão. Adorno está na tentativa, o que nos remete à sua Dialética Negativa, de reconexão entre arte e práxis, de restaurar a arte como uma nova forma de cognição para escapar aos efeitos deletérios da negatividade do conceito, utilizando-a para uma práxis revolucionária[8]. O intuito é perpetrado na direção de uma filosofia não nominalista da linguagem[9], que restabeleça o paradigma crítico de racionalidade, no sentido de recuperação da mimese, não concernindo meramente ao domínio estético, mas também a uma teoria do conceito, que permite a visualização do sofrimento e mazelas sociais.
“O arquiteto introvertido do pensamento mora por detrás da lua confiscada pelos técnicos extrovertidos. Em face da sociedade dilatada de modo desmedido e dos progressos do conhecimento positivo da natureza, os edifícios conceituais nos quais, segundo os costumes filosóficos, o todo deveria poder ser alocado, assemelham-se aos restos da simples economia de mercado em meio ao capitalismo industrial tardio.” (ADORNO, T. Dialética Negativa, §1, p. 11)
O Juízo reflexionante, assim como desenvolvera Kant, é o que permite a saída do fetiche da abstração, da racionalidade abstrata, e uma reconexão à natureza objetiva em seus traços de espontaneidade; o que permite autonomia para a realização da liberdade no seio do ser social. Entretanto, num mundo totalmente administrado, institucionalizado sob a égide do capitalismo em fase tardia, a relação dialética da faculdade de julgar reflexionante tornou-se inviável. A dimensão subjetiva da razão tornou-se mero apêndice de uma objetividade, tal como o conceito hegeliano de Espírito, a totalidade das mediações numa confluência entre necessidade e liberdade, foi revogado no capitalismo tardio, que resolveu essa equação de maneira desigual, pendendo para a necessidade.
“A regressão da filosofia a uma ciência particular, imposta pelas ciências particulares, é a expressão mais evidente de seu destino histórico. Se Kant, segundo suas próprias palavras, tinha se libertado do conceito escolar de filosofia e passado para o conceito cósmico dela, a filosofia foi agora obrigada a regredir ao seu conceito escolar.” (Idem, §1, p. 12)
É preciso, portanto, retomar a autorreflexão crítica a partir do ponto em que Hegel a deixou. Esse empreendimento demanda uma reedição da dialética hegeliana, no sentido de a reconectar com a heterogeneidade, de fazer jus ao momento não-conceitual dos objetos, forçando o equilíbrio entre o idêntico e o não-idêntico.  
O processo, já sublinhado por Lukács, pelo qual desde o século XVII a filosofia foi sendo rebaixada a um aspecto regional, destacando-se dela as ciências particulares, representa a desconexão entre teoria e práxis, levando a filosofia a se converter em mera epistemologia. É o que marca também a discrepância positivista entre filosofia e realidade. Para abarcar esse processo, Adorno precisa fazer frente ao conceito positivista de experiência.
“Em uma oposição brusca em relação ao ideal de ciência corrente, a objetividade de um conhecimento dialético precisa de mais, não de menos sujeito. Senão, a experiência filosófica definha. O espírito positivista do tempo, porém, é alérgico a isso. Segundo ele, nem todos são capazes de uma tal experiência. Ela constituiria o privilégio de indivíduos, um privilégio determinado por suas disposições e história de vida; exigi-la enquanto condição do conhecimento seria elitista e antidemocrático.” (Idem, §18, p. 42)
A mediação total inviabiliza de antemão o “subjetivo” ao qual o positivismo quer se antepor, por outro lado, a crítica à racionalidade formal torna-se uma dissonância, um privilégio. O positivismo, por seu turno, fica aquém de si próprio: ao não ser capaz de responder por um paradigma crítico de racionalidade, acaba por fazer uma apologia ao existente.
Necessário é para Adorno, explicitar o trabalho paradoxal da linguagem - em seu jogo entre o que é conhecido (o heterogêneo, os objetos) e a sua comunicação, pois é aqui que as coisas são esquecidas, como que em uma Νεφελοκοκκυγία[10]. No concernente à verdade singular, só se concede aqui que ela seja alcançada por meio de negação determinada, consequentemente, pela mediação do conceito – faz-se jus a Nietzsche, em suas considerações acerca da linguagem, ao se distanciar da comunicabilidade imediata, da esfera das convenções, porém, sem dispensar o trabalho do conceito.
“O critério do verdadeiro não é a sua comunicabilidade imediata a qualquer um. É preciso resistir à compulsão quase universal a confundir a comunicação daquilo que é conhecido com aquilo que é conhecido, e mesmo a colocá-la se possível em uma posição mais elevada, uma vez que atualmente cada passo em direção à comunicação liquida e falsifica a verdade. Entrementes, é nesse paradoxo que trabalha tudo o que diz respeito à linguagem. A verdade é objetiva e não plausível. Por menos que toque imediatamente a qualquer um e por mais que careça da mediação subjetiva, aplica-se efetivamente à sua tessitura aquilo que Spinoza já reclamava de maneira por demais entusiástica para a verdade singular: o fato de ela ser seu próprio índice.” (Idem, §18, p. 43)
Para uma reformulação do conceito hegeliano de experiência, é preciso se ater aqui que, segundo Adorno, Hegel ainda sucumbe ao acabamento do sentido, à compulsão pelo idêntico, o que não abre espaço para o caráter singular do indivíduo do ponto de vista dos processos de cognição, processos somáticos, prescindidos pela cientificidade do século XIX. A dificuldade envolvida no conceito de experiência está em o objeto desdobrar as leis imanentes de seu conteúdo. A tese de Hegel, seguida por Lukács, é a de que o pensamento moderno e sua noção de experiência dão primazia à quantidade, em detrimento da qualidade, característica visualizada já por Kant em sua distinção acerca do Juízo reflexionante[11]. O desprezo pela qualidade não deixa incólume a quantidade, pois ela é o resultado das qualidades. O sacrifício total do elemento qualitativo significa a carência completa da autorreflexão[12].
Adorno dedica-se, então, a ligar os aspectos qualitativos e quantitativos ao conceito de experiência, ao passo que se poderia reabilitar a noção de sujeito – uma instância qualitativa que espera o aspecto qualitativo do objeto, em que é necessária a mediação do conceito, a divisão do trabalho, já figurada pelo contexto do herói Odisseu -, elaborando uma nova teoria da subjetividade, porquanto um dos efeitos da ênfase quantificadora em relação aos objetos é o rebaixamento do sujeito a um ponto vazio. Uma concepção passiva da mente acabou prevalecendo de maneira inesperada, em contraposição à revolução copernicana de Kant, pela qual a ênfase emancipatória é colocada no âmbito prático. O que se quer é uma atitude não reducionista em relação aos emblemas da modernidade: o sujeito precisa realizar sua liberdade a partir da liberdade do objeto, não em detrimento dela. Não se trata de resgatar romanticamente uma mimese primordial, como no empirismo inglês, nem cair no fetichismo do conceito.
“Diferenciado é aquele que, na coisa e em seu conceito, ainda consegue distinguir o mais ínfimo que escapa ao conceito; somente a diferencialidade alcança o mais ínfimo. Em seu postulado, ou seja, no postulado da faculdade da experiência do objeto - e a diferencialidade é a sua experiência transformada em forma de reação subjetiva -, o momento mimético do conhecimento, o momento da afinidade eletiva entre aquele que conhece e aquilo que é conhecido, encontra refúgio.” (Idem, §20, p. 46)
O que lhe dá ensejo para desferir suas críticas às tentativas contemporâneas de fuga ao fetichismo do conceito, caracterizados aqui o existencialismo sartreano, a fenomenologia husserliana e a ontologia fundamental de Heidegger[13]. Critica-se, com relação ao primeiro, sua proveniência inconsciente do idealismo, no seu uso de um filosofema romântico da radicalização fichteana da atividade livre. Mas, por outro lado, evidencia-se o que ele tem de bem-vindo, o que seja algo de contingente, o individualismo que leva ao engajamento político, em sua espontaneidade – capacidade de escapar ao determinismo contextual - frente à fossilização do comunismo como sistema administrado.
“A representação de uma liberdade absoluta de decisão é tão ilusória quanto aquela do eu absoluto que engendra o mundo a partir de si. A mais modesta experiência política é suficiente para fazer balançar como cenários as situações construídas para servir de pretexto para a decisão dos heróis. Nem mesmo sobre um plano dramatúrgico poder-se-ia postular tais decisões soberanas em uma imbricação histórica concreta.” (Idem, §22, p. 49)
O existencialismo está assentado sob o caráter da decisão absoluta do sujeito, mas não vê que está atrelado às próprias correntes da dominação. Insistir nela é não somente se resignar à tomada de decisão, mas tomar uma posição ingênua acerca de seu caráter de descontinuidade a partir do enredamento contextual. A crítica adorniana aponta a vinculação do existencialismo ao formalismo e ao nominalismo. Com relação ao primeiro, está o valor absoluto do engajamento na fundamentação de determinação de escolha, que revela uma absolutização da contingência, ou seja, uma tautologia pela qual “o inevitável é necessário”. O existencialismo, ao se comprometer com a substância do sujeito num individualismo, a despeito de uma liberdade dinâmica, recai em uma ficção gramatical da identidade, por tender a um nominalismo e a um atomismo lógico. Sua querela em relação ao fetichismo do conceito se torna o mais novo caso de fetichismo, porque se pretende em um lugar privilegiado, esvaziado de conteúdo.
“O arquétipo longínquo e vago do modo como inversamente se deveria pensar encontra-se nas línguas junto aos nomes que não impregnam categorialmente as coisas, com certeza ao preço de sua função cognitiva. Um conhecimento não reduzido quer aquilo ante o que lhe foi adestrado se resignar e que é obscurecido pelos nomes que se acham perto demais daí; resignação e ofuscação completam-se ideologicamente. A exatidão idiossincrática na escolha das palavras, como se elas devessem denominar a coisa, não é a menor das razões pelas quais a exposição é essencial à filosofia.” (Idem, §23, p. 52)
No intuito de elucidar a relação entre a dialética negativa e a linguagem, é mister recuperar, mantendo certo distanciamento assim como a característica do mito e da imagem dialética, aquele arquétipo longínquo: a mimese, amálgama de forma e conteúdo, reunidos no nome, dentro do qual um processo de secularização tende para sua separação radical. O negativo enquanto tal é o ensejo à autolegitimação da filosofia, que passa a aceitar a heterogeneidade, mostrando a diferença entre o conceito e a coisa, (sua recusa em caber nele), bem como neutralizando aquela tendência apologética ao existente que tenta escapar ao fetichismo do conceito.
Para tanto, Adorno lança mão de seu conceito de constelação[14]. A dialética rompe os potenciais do conceito – sua tendência de se distanciar da coisa pela conceptualização - ao acessar as ruínas da história. Dessarte, a dialética negativa trava seu compromisso com uma teoria da experiência, com pretensões de validade, trabalhando com conceitos, sobretudo, através da imagem dialética ou de constelações: a expressão linguística inacabada da história coagulada nos conceitos. É pela negação do nome que a história faz jus ao nome, prestando justiça também a um elemento não-conceitual, somático, razão pela qual se revela não-hegeliano.
Indo da teoria da experiência em direção às indicações lógicas e ontológicas, Adorno pretende conduzir a dialética hegeliana à realização de seu potencial, assim como fazer uma apropriação crítica da contradição - a relação entre identidade e diferença. O pensamento tem uma estrutura dialética e é ela a responsável por repelir o pensamento de si mesmo ao impeli-lo para além dos conceitos, em direção ao não-idêntico. É esse o conceito de dialética que lhe interessa resgatar.
“Seu nome não diz inicialmente senão que os objetos não se dissolvem em seus conceitos, que esses conceitos entram por fim em contradição com a norma tradicional da adaequatio. A contradição não se confunde com aquilo em que o idealismo absoluto de Hegel precisou inevitavelmente transfigurá-la: ela não é nenhuma essência heraclítica. Ela é o indício da não-verdade da identidade, da dissolução sem resíduos daquilo que é concebido no conceito. Todavia, a aparência de identidade é intrínseca ao próprio pensamento em sua forma pura. Pensar significa identificar.” (Idem, §2, p. 12-13)
A dialética, portanto, é tomada aqui como uma tentativa de avaliar aquilo que lhe é não-idêntico, a partir da tendência à totalidade. Seu direcionamento da lógica à ontologia contém uma crítica a Hegel, pela qual é acusado de ter fundido a identidade na dimensão da contradição. Dessa maneira, se faz ver a herança kantiana referente à Refutação do Idealismo, no vínculo da dialética com o sacrifício, dimensão do padecimento na estrutura dialética do conceito, o preço a ser pago em termos da multiplicidade quantitativa[15].
A dialética parte do reconhecimento da cisão na eticidade, do sofrimento social, e se torna para Adorno ainda mais necessária sob o fetiche da abstração – a ontologia do estado falso[16]. A empresa da dialética negativa é tomar a dialética não como uma máquina que opera em ponto morto, contudo ela tem de ser a expressividade conceitual de uma vida cindida. A exigência ontológica para realizar a dialética hegeliana é que ela seja impelida pelo heterogêneo, a sua reconciliação não se fecha, não é acabada, a fim de liberar o não-idêntico[17].
“Com base em sua situação histórica, a filosofia tem o seu interesse verdadeiro voltado para o âmbito em relação ao qual Hegel, em sintonia com a tradição, expressou o seu desinteresse: o âmbito do não-conceitual, do individual e particular; aquilo que desde Platão foi alijado como perecível e insignificante e sobre o que Hegel colou a etiqueta de existência pueril. [...]Tanto Bergson quanto Husserl, representantes exemplares da modernidade filosófica, inculcaram esse estado de coisas em seus nervos, mas acabaram por retornar à metafísica tradicional. [...] O sal dialético foi arrastado pelo fluir indiferenciado da vida; aquilo que se cristalizou materialmente foi alijado como subalterno e não concebido juntamente com o seu caráter subalterno.” (Idem, §4, p. 15)
Husserl e Bergson são as figuras que reagem ao idealismo aqui privilegiadas. Este, com seu culto à imediatidade irracional, em resposta ao idealismo, a ele permanece preso, pois renuncia a dialética. Ao sacrificar a dialética, essa permanência sob a imanência subjetiva torna-se incapaz de reconstituir as condições de dizibilidade e de pretensão de validade; ao renunciar a rigidez do conceito, perde a capacidade de autorreflexão e de validação intersubjetiva, por ser mediada linguisticamente[18].
Com a finalidade de reformulação do paradigma de racionalidade crítica e habilitação da autêntica negação determinada e imanente, a dialética negativa erige-se como a melhor realização possível, correspondendo aos potenciais da tradição dialética na história da filosofia. A utopia do conhecimento é abrir o não-idêntico sem se enveredar pelo acabamento total. A crítica à filosofia da identidade ultrapassa a linguagem e se torna uma ontologia do sacrifício, uma racionalidade que operacionaliza a identidade sem sucumbir a ela[19].
“A filosofia, mesmo a hegeliana, expõe-se à objeção geral de que, porquanto possui obrigatoriamente conceitos como material, decide-se previamente de maneira idealista. De fato, nenhuma filosofia, nem mesmo o empirismo extremo, pode arrastar pelos cabelos os facta bruta e apresentá-los como casos na anatomia ou como experimentos na física; nenhuma filosofia está em condições de colar as coisas particulares nos textos, como algumas pinturas poderiam fazê-la pensar. Em sua universalidade formal, porém, o argumento toma o conceito de modo tão fetichista quanto esse conceito se expõe ingenuamente no interior de seu domínio, como uma totalidade autossuficiente em relação à qual o pensamento filosófico não pode nada.” (Idem, §6, p. 18)
Uma coisa é a necessidade da utilização de conceitos, outra é elevar esse elemento a estatuto prioritário ou criticá-la se eximindo totalmente como no caso de Kierkegaard, Sartre ou Bergson. A consciência do caráter não-absoluto da filosofia é caracterizada pela finitude do caráter conceitual.
A dialética só pode se tornar teoria da formação dos conceitos se ela se eximir da autarquia do conceito como genealogia[20], que reconhece a luta de valências sedimentada no aparato conceitual. Sob os conceitos estão τὰ ὄντα, as coisas diversas e até mesmo contrárias, que estão em sua base de formação, sacrificadas em favor do ente, da reificação e da racionalidade abstrata.
O conceito positivo de esclarecimento está na capacidade da dialética negativa, sob a proposta da autorreflexão restaurada, de resgatar a ideia relacional de infinitude hegeliana. Por seu turno, Hegel trabalha essa infinitude como hipostasiada, pois nutre a expectativa de relação, mas, por uma compulsão pelo idêntico, quer essa infinitude in acto. A totalidade dialética não se encontra disponível, ela é negativa – é um nós do sofrimento[21].



[1] ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Jorge Zahar Editora: Rio de Janeiro, 2006.
[2] Idem, §1, p.17-18.
[3] Para isso ver, por exemplo, HABERMAS, J. “Técnica e ciência enquanto ‘ideologia’”; VII, p. 336. In: Pensadores. São Paulo: 1980.
[4] Ver, por exemplo: LUKÁCS, Georg. Antinomias do Pensamento Burguês. In: História e Consciência de Classe. Martins Fontes, p. 250.
[5] Idem, §§19-20, p. 42.
[6] ADORNO, T. Dialética Negativa. Jorge Zahar Editora: Rio de Janeiro, 2009, p.19.
[7] ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Idem, §17, p. 38.
[8] Idem, §17, p. 39.
[9] Idem, §21, p. 43.
[10] “Nebulosa cucolândia”, expressão cunhada por Aristófanes (As Aves, 819). Cf. NIETZSCHE, F. Sobre Verdade e a Mentira no Sentido Extramoral. São Paulo: Hedra, 2008; p. 34.

[11] Idem, §19, p. 44.
[12] Idem, §19, p. 45.
[13] Idem, § 22, p. 49.
[14] Idem, §23, p. 53.
[15] Idem, §3, p. 14.
[16] Idem, §5, p. 18.
[17] Idem, §3, p. 14-15.
[18] Idem, §4, p. 16.
[19] Idem, §5, p. 18.
[20] Para isso ver, por exemplo: NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. Segunda Dissertação, §13.
[21] Idem, §7, p. 19.