sexta-feira, 14 de março de 2014

Breve início ao Trabalho da Dialética Negativa

Em sua obra Dialética do Esclarecimento[1], Adorno e Horkheimer fazem ver o processo de esclarecimento como um projeto que procura emancipar o ser humano através do desencantamento do mundo, substituindo a intuição pelo conceito. Processo que bem se destaca na modernidade na passagem citada pelos autores em que Bacon, ao propor um “casamento feliz” entre o intelecto e a natureza, já realizaria assim um casamento patriarcal, que já provém de um desencantamento, um esgotamento da conexão e da sedução mítica; na esteira de Lukács, é essa a indiferença com relação ao conteúdo que marca racionalidade formal, o que possui uma intimidade visceral com a maneira pela qual o capital produz e se reproduz[2].
“A dominação da natureza traça o círculo dentro do qual a Crítica da Razão Pura baniu o pensamento. Kant combinou a doutrina da incessante e laboriosa progressão do pensamento ao infinito com a insistência em sua insuficiência e eterna limitação. Sua lição é um oráculo. Não há nenhum ser no mundo que a ciência não possa penetrar, mas o que pode ser penetrado pela ciência não é o ser.” (Idem, p. 33)
Como a ciência tudo constrói, nada lhe escapa como genuinamente outro, o esclarecimento segue o caminho pela extirpação do não-idêntico. De outro lado, a liberdade kantiana já tende para um comportamento adaptativo[3], assim como o “mito do dado”, fomentado pelo pensamento positivista, que reduz a condição racional à pura e simples autoconservação. Tal como é feita a correlação entre o esquematismo transcendental e a teoria da mediação do valor, como semelhantemente enunciada por Lukács[4], o que caracteriza de antemão o estado de calamidade triunfal e a falência da crítica, no qual resplandece o mundo totalmente esclarecido.
“O trabalho social de todo indivíduo está mediatizado pelo princípio do eu na economia burguesa; a um ele deve restituir o capital aumentado, a outro a força para um excedente de trabalho. Mas quanto mais o processo de autoconservação é assegurado pela divisão burguesa de trabalho, tanto mais ele força a auto-alienação dos indivíduos, que têm de se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica. Mas isso, mais uma vez, é levado em conta pelo pensamento esclarecido: aparentemente, o próprio sujeito transcendental do conhecimento acaba por ser suprimido como a única reminiscência da subjetividade e é substituído pelo trabalho tanto mais suave dos mecanismos automáticos de controle.” (ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Idem, §16, p. 36)
A regressão da racionalidade ao intelecto autocrático implica a subordinação das vivências ao âmbito do comunicável e seu deplorável empobrecimento. Na trajetória da mitologia à logística, os sujeitos perdem a dinâmica da reflexão sobre si, bem como a capacidade de reconhecer no outro os efeitos do recrudescimento sobre si próprio, a consciência perde a capacidade crítica de estranhamento e reconhecimento[5]. A falência da crítica se mostra no caráter obsoleto da razão sob a sociedade racionalizada. Sem a negatividade do conceito resta apenas a intuição mística das coisas, não há aquela relação paradoxal de estranhamento do objeto pela consciência, que abre, por seu turno, a capacidade crítica, dinâmica de que depende a dialética. É o que deve proporcionar o acesso pelos conceitos para além dos conceitos, ir com o esclarecimento para além dele: a natureza que se revela em sua face multilada – diretriz na Dialética Negativa de Adorno, de sua teoria crítica de racionalidade, a qual pretende que a natureza chame de novo a si mesma pelo nome[6].
Os autores veem como modelo crucial para visualização da dialética do esclarecimento, em seus primórdios, o episódio das Sereias, presente no canto duodécimo da Odisseia homérica, porquanto a partir dele é possível ver na estruturação das vivências, no espaço temporalizado, a possibilidade de experiência, aquilo que pode ser comunicável, ou seja, posto em categorias[7].
“Esse entrelaçamento de mito, dominação e trabalho está conservado em uma das narrativas de Homero. O duodécimo canto da Odisseia relata o encontro com as Sereias. A sedução que exercem é a de se deixar perder no que passou. Mas o herói a quem se destina a sedução emancipou-se com o sofrimento. Nos perigos mortais que teve de arrostar, foi dando têmpera à unidade de sua própria vida e à identidade da pessoa.” (Idem, §17, p. 38)
É a formação do intelecto autocrático, os processos de formação do “eu”, através do auto-apoderamento, que permite exercer o poder de mando sobre si e domínio sobre o exterior. A temporalização, submissão do vivencial e do singular a estruturas abstratas, é o que abre o âmbito da experiência compartilhada, que pode se transformar em saber praticável. É aquilo que marca a passagem para a civilização e para a História.
O que a sedução das Sereias pode acarretar é o esfacelamento da ordem patriarcal: condição de possibilidade da civilização, a rígida hierarquia que ocasiona o “eu”, a intersubjetividade e as relações de domínio e repressão. Adorno está na tentativa, o que nos remete à sua Dialética Negativa, de reconexão entre arte e práxis, de restaurar a arte como uma nova forma de cognição para escapar aos efeitos deletérios da negatividade do conceito, utilizando-a para uma práxis revolucionária[8]. O intuito é perpetrado na direção de uma filosofia não nominalista da linguagem[9], que restabeleça o paradigma crítico de racionalidade, no sentido de recuperação da mimese, não concernindo meramente ao domínio estético, mas também a uma teoria do conceito, que permite a visualização do sofrimento e mazelas sociais.
“O arquiteto introvertido do pensamento mora por detrás da lua confiscada pelos técnicos extrovertidos. Em face da sociedade dilatada de modo desmedido e dos progressos do conhecimento positivo da natureza, os edifícios conceituais nos quais, segundo os costumes filosóficos, o todo deveria poder ser alocado, assemelham-se aos restos da simples economia de mercado em meio ao capitalismo industrial tardio.” (ADORNO, T. Dialética Negativa, §1, p. 11)
O Juízo reflexionante, assim como desenvolvera Kant, é o que permite a saída do fetiche da abstração, da racionalidade abstrata, e uma reconexão à natureza objetiva em seus traços de espontaneidade; o que permite autonomia para a realização da liberdade no seio do ser social. Entretanto, num mundo totalmente administrado, institucionalizado sob a égide do capitalismo em fase tardia, a relação dialética da faculdade de julgar reflexionante tornou-se inviável. A dimensão subjetiva da razão tornou-se mero apêndice de uma objetividade, tal como o conceito hegeliano de Espírito, a totalidade das mediações numa confluência entre necessidade e liberdade, foi revogado no capitalismo tardio, que resolveu essa equação de maneira desigual, pendendo para a necessidade.
“A regressão da filosofia a uma ciência particular, imposta pelas ciências particulares, é a expressão mais evidente de seu destino histórico. Se Kant, segundo suas próprias palavras, tinha se libertado do conceito escolar de filosofia e passado para o conceito cósmico dela, a filosofia foi agora obrigada a regredir ao seu conceito escolar.” (Idem, §1, p. 12)
É preciso, portanto, retomar a autorreflexão crítica a partir do ponto em que Hegel a deixou. Esse empreendimento demanda uma reedição da dialética hegeliana, no sentido de a reconectar com a heterogeneidade, de fazer jus ao momento não-conceitual dos objetos, forçando o equilíbrio entre o idêntico e o não-idêntico.  
O processo, já sublinhado por Lukács, pelo qual desde o século XVII a filosofia foi sendo rebaixada a um aspecto regional, destacando-se dela as ciências particulares, representa a desconexão entre teoria e práxis, levando a filosofia a se converter em mera epistemologia. É o que marca também a discrepância positivista entre filosofia e realidade. Para abarcar esse processo, Adorno precisa fazer frente ao conceito positivista de experiência.
“Em uma oposição brusca em relação ao ideal de ciência corrente, a objetividade de um conhecimento dialético precisa de mais, não de menos sujeito. Senão, a experiência filosófica definha. O espírito positivista do tempo, porém, é alérgico a isso. Segundo ele, nem todos são capazes de uma tal experiência. Ela constituiria o privilégio de indivíduos, um privilégio determinado por suas disposições e história de vida; exigi-la enquanto condição do conhecimento seria elitista e antidemocrático.” (Idem, §18, p. 42)
A mediação total inviabiliza de antemão o “subjetivo” ao qual o positivismo quer se antepor, por outro lado, a crítica à racionalidade formal torna-se uma dissonância, um privilégio. O positivismo, por seu turno, fica aquém de si próprio: ao não ser capaz de responder por um paradigma crítico de racionalidade, acaba por fazer uma apologia ao existente.
Necessário é para Adorno, explicitar o trabalho paradoxal da linguagem - em seu jogo entre o que é conhecido (o heterogêneo, os objetos) e a sua comunicação, pois é aqui que as coisas são esquecidas, como que em uma Νεφελοκοκκυγία[10]. No concernente à verdade singular, só se concede aqui que ela seja alcançada por meio de negação determinada, consequentemente, pela mediação do conceito – faz-se jus a Nietzsche, em suas considerações acerca da linguagem, ao se distanciar da comunicabilidade imediata, da esfera das convenções, porém, sem dispensar o trabalho do conceito.
“O critério do verdadeiro não é a sua comunicabilidade imediata a qualquer um. É preciso resistir à compulsão quase universal a confundir a comunicação daquilo que é conhecido com aquilo que é conhecido, e mesmo a colocá-la se possível em uma posição mais elevada, uma vez que atualmente cada passo em direção à comunicação liquida e falsifica a verdade. Entrementes, é nesse paradoxo que trabalha tudo o que diz respeito à linguagem. A verdade é objetiva e não plausível. Por menos que toque imediatamente a qualquer um e por mais que careça da mediação subjetiva, aplica-se efetivamente à sua tessitura aquilo que Spinoza já reclamava de maneira por demais entusiástica para a verdade singular: o fato de ela ser seu próprio índice.” (Idem, §18, p. 43)
Para uma reformulação do conceito hegeliano de experiência, é preciso se ater aqui que, segundo Adorno, Hegel ainda sucumbe ao acabamento do sentido, à compulsão pelo idêntico, o que não abre espaço para o caráter singular do indivíduo do ponto de vista dos processos de cognição, processos somáticos, prescindidos pela cientificidade do século XIX. A dificuldade envolvida no conceito de experiência está em o objeto desdobrar as leis imanentes de seu conteúdo. A tese de Hegel, seguida por Lukács, é a de que o pensamento moderno e sua noção de experiência dão primazia à quantidade, em detrimento da qualidade, característica visualizada já por Kant em sua distinção acerca do Juízo reflexionante[11]. O desprezo pela qualidade não deixa incólume a quantidade, pois ela é o resultado das qualidades. O sacrifício total do elemento qualitativo significa a carência completa da autorreflexão[12].
Adorno dedica-se, então, a ligar os aspectos qualitativos e quantitativos ao conceito de experiência, ao passo que se poderia reabilitar a noção de sujeito – uma instância qualitativa que espera o aspecto qualitativo do objeto, em que é necessária a mediação do conceito, a divisão do trabalho, já figurada pelo contexto do herói Odisseu -, elaborando uma nova teoria da subjetividade, porquanto um dos efeitos da ênfase quantificadora em relação aos objetos é o rebaixamento do sujeito a um ponto vazio. Uma concepção passiva da mente acabou prevalecendo de maneira inesperada, em contraposição à revolução copernicana de Kant, pela qual a ênfase emancipatória é colocada no âmbito prático. O que se quer é uma atitude não reducionista em relação aos emblemas da modernidade: o sujeito precisa realizar sua liberdade a partir da liberdade do objeto, não em detrimento dela. Não se trata de resgatar romanticamente uma mimese primordial, como no empirismo inglês, nem cair no fetichismo do conceito.
“Diferenciado é aquele que, na coisa e em seu conceito, ainda consegue distinguir o mais ínfimo que escapa ao conceito; somente a diferencialidade alcança o mais ínfimo. Em seu postulado, ou seja, no postulado da faculdade da experiência do objeto - e a diferencialidade é a sua experiência transformada em forma de reação subjetiva -, o momento mimético do conhecimento, o momento da afinidade eletiva entre aquele que conhece e aquilo que é conhecido, encontra refúgio.” (Idem, §20, p. 46)
O que lhe dá ensejo para desferir suas críticas às tentativas contemporâneas de fuga ao fetichismo do conceito, caracterizados aqui o existencialismo sartreano, a fenomenologia husserliana e a ontologia fundamental de Heidegger[13]. Critica-se, com relação ao primeiro, sua proveniência inconsciente do idealismo, no seu uso de um filosofema romântico da radicalização fichteana da atividade livre. Mas, por outro lado, evidencia-se o que ele tem de bem-vindo, o que seja algo de contingente, o individualismo que leva ao engajamento político, em sua espontaneidade – capacidade de escapar ao determinismo contextual - frente à fossilização do comunismo como sistema administrado.
“A representação de uma liberdade absoluta de decisão é tão ilusória quanto aquela do eu absoluto que engendra o mundo a partir de si. A mais modesta experiência política é suficiente para fazer balançar como cenários as situações construídas para servir de pretexto para a decisão dos heróis. Nem mesmo sobre um plano dramatúrgico poder-se-ia postular tais decisões soberanas em uma imbricação histórica concreta.” (Idem, §22, p. 49)
O existencialismo está assentado sob o caráter da decisão absoluta do sujeito, mas não vê que está atrelado às próprias correntes da dominação. Insistir nela é não somente se resignar à tomada de decisão, mas tomar uma posição ingênua acerca de seu caráter de descontinuidade a partir do enredamento contextual. A crítica adorniana aponta a vinculação do existencialismo ao formalismo e ao nominalismo. Com relação ao primeiro, está o valor absoluto do engajamento na fundamentação de determinação de escolha, que revela uma absolutização da contingência, ou seja, uma tautologia pela qual “o inevitável é necessário”. O existencialismo, ao se comprometer com a substância do sujeito num individualismo, a despeito de uma liberdade dinâmica, recai em uma ficção gramatical da identidade, por tender a um nominalismo e a um atomismo lógico. Sua querela em relação ao fetichismo do conceito se torna o mais novo caso de fetichismo, porque se pretende em um lugar privilegiado, esvaziado de conteúdo.
“O arquétipo longínquo e vago do modo como inversamente se deveria pensar encontra-se nas línguas junto aos nomes que não impregnam categorialmente as coisas, com certeza ao preço de sua função cognitiva. Um conhecimento não reduzido quer aquilo ante o que lhe foi adestrado se resignar e que é obscurecido pelos nomes que se acham perto demais daí; resignação e ofuscação completam-se ideologicamente. A exatidão idiossincrática na escolha das palavras, como se elas devessem denominar a coisa, não é a menor das razões pelas quais a exposição é essencial à filosofia.” (Idem, §23, p. 52)
No intuito de elucidar a relação entre a dialética negativa e a linguagem, é mister recuperar, mantendo certo distanciamento assim como a característica do mito e da imagem dialética, aquele arquétipo longínquo: a mimese, amálgama de forma e conteúdo, reunidos no nome, dentro do qual um processo de secularização tende para sua separação radical. O negativo enquanto tal é o ensejo à autolegitimação da filosofia, que passa a aceitar a heterogeneidade, mostrando a diferença entre o conceito e a coisa, (sua recusa em caber nele), bem como neutralizando aquela tendência apologética ao existente que tenta escapar ao fetichismo do conceito.
Para tanto, Adorno lança mão de seu conceito de constelação[14]. A dialética rompe os potenciais do conceito – sua tendência de se distanciar da coisa pela conceptualização - ao acessar as ruínas da história. Dessarte, a dialética negativa trava seu compromisso com uma teoria da experiência, com pretensões de validade, trabalhando com conceitos, sobretudo, através da imagem dialética ou de constelações: a expressão linguística inacabada da história coagulada nos conceitos. É pela negação do nome que a história faz jus ao nome, prestando justiça também a um elemento não-conceitual, somático, razão pela qual se revela não-hegeliano.
Indo da teoria da experiência em direção às indicações lógicas e ontológicas, Adorno pretende conduzir a dialética hegeliana à realização de seu potencial, assim como fazer uma apropriação crítica da contradição - a relação entre identidade e diferença. O pensamento tem uma estrutura dialética e é ela a responsável por repelir o pensamento de si mesmo ao impeli-lo para além dos conceitos, em direção ao não-idêntico. É esse o conceito de dialética que lhe interessa resgatar.
“Seu nome não diz inicialmente senão que os objetos não se dissolvem em seus conceitos, que esses conceitos entram por fim em contradição com a norma tradicional da adaequatio. A contradição não se confunde com aquilo em que o idealismo absoluto de Hegel precisou inevitavelmente transfigurá-la: ela não é nenhuma essência heraclítica. Ela é o indício da não-verdade da identidade, da dissolução sem resíduos daquilo que é concebido no conceito. Todavia, a aparência de identidade é intrínseca ao próprio pensamento em sua forma pura. Pensar significa identificar.” (Idem, §2, p. 12-13)
A dialética, portanto, é tomada aqui como uma tentativa de avaliar aquilo que lhe é não-idêntico, a partir da tendência à totalidade. Seu direcionamento da lógica à ontologia contém uma crítica a Hegel, pela qual é acusado de ter fundido a identidade na dimensão da contradição. Dessa maneira, se faz ver a herança kantiana referente à Refutação do Idealismo, no vínculo da dialética com o sacrifício, dimensão do padecimento na estrutura dialética do conceito, o preço a ser pago em termos da multiplicidade quantitativa[15].
A dialética parte do reconhecimento da cisão na eticidade, do sofrimento social, e se torna para Adorno ainda mais necessária sob o fetiche da abstração – a ontologia do estado falso[16]. A empresa da dialética negativa é tomar a dialética não como uma máquina que opera em ponto morto, contudo ela tem de ser a expressividade conceitual de uma vida cindida. A exigência ontológica para realizar a dialética hegeliana é que ela seja impelida pelo heterogêneo, a sua reconciliação não se fecha, não é acabada, a fim de liberar o não-idêntico[17].
“Com base em sua situação histórica, a filosofia tem o seu interesse verdadeiro voltado para o âmbito em relação ao qual Hegel, em sintonia com a tradição, expressou o seu desinteresse: o âmbito do não-conceitual, do individual e particular; aquilo que desde Platão foi alijado como perecível e insignificante e sobre o que Hegel colou a etiqueta de existência pueril. [...]Tanto Bergson quanto Husserl, representantes exemplares da modernidade filosófica, inculcaram esse estado de coisas em seus nervos, mas acabaram por retornar à metafísica tradicional. [...] O sal dialético foi arrastado pelo fluir indiferenciado da vida; aquilo que se cristalizou materialmente foi alijado como subalterno e não concebido juntamente com o seu caráter subalterno.” (Idem, §4, p. 15)
Husserl e Bergson são as figuras que reagem ao idealismo aqui privilegiadas. Este, com seu culto à imediatidade irracional, em resposta ao idealismo, a ele permanece preso, pois renuncia a dialética. Ao sacrificar a dialética, essa permanência sob a imanência subjetiva torna-se incapaz de reconstituir as condições de dizibilidade e de pretensão de validade; ao renunciar a rigidez do conceito, perde a capacidade de autorreflexão e de validação intersubjetiva, por ser mediada linguisticamente[18].
Com a finalidade de reformulação do paradigma de racionalidade crítica e habilitação da autêntica negação determinada e imanente, a dialética negativa erige-se como a melhor realização possível, correspondendo aos potenciais da tradição dialética na história da filosofia. A utopia do conhecimento é abrir o não-idêntico sem se enveredar pelo acabamento total. A crítica à filosofia da identidade ultrapassa a linguagem e se torna uma ontologia do sacrifício, uma racionalidade que operacionaliza a identidade sem sucumbir a ela[19].
“A filosofia, mesmo a hegeliana, expõe-se à objeção geral de que, porquanto possui obrigatoriamente conceitos como material, decide-se previamente de maneira idealista. De fato, nenhuma filosofia, nem mesmo o empirismo extremo, pode arrastar pelos cabelos os facta bruta e apresentá-los como casos na anatomia ou como experimentos na física; nenhuma filosofia está em condições de colar as coisas particulares nos textos, como algumas pinturas poderiam fazê-la pensar. Em sua universalidade formal, porém, o argumento toma o conceito de modo tão fetichista quanto esse conceito se expõe ingenuamente no interior de seu domínio, como uma totalidade autossuficiente em relação à qual o pensamento filosófico não pode nada.” (Idem, §6, p. 18)
Uma coisa é a necessidade da utilização de conceitos, outra é elevar esse elemento a estatuto prioritário ou criticá-la se eximindo totalmente como no caso de Kierkegaard, Sartre ou Bergson. A consciência do caráter não-absoluto da filosofia é caracterizada pela finitude do caráter conceitual.
A dialética só pode se tornar teoria da formação dos conceitos se ela se eximir da autarquia do conceito como genealogia[20], que reconhece a luta de valências sedimentada no aparato conceitual. Sob os conceitos estão τὰ ὄντα, as coisas diversas e até mesmo contrárias, que estão em sua base de formação, sacrificadas em favor do ente, da reificação e da racionalidade abstrata.
O conceito positivo de esclarecimento está na capacidade da dialética negativa, sob a proposta da autorreflexão restaurada, de resgatar a ideia relacional de infinitude hegeliana. Por seu turno, Hegel trabalha essa infinitude como hipostasiada, pois nutre a expectativa de relação, mas, por uma compulsão pelo idêntico, quer essa infinitude in acto. A totalidade dialética não se encontra disponível, ela é negativa – é um nós do sofrimento[21].



[1] ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Jorge Zahar Editora: Rio de Janeiro, 2006.
[2] Idem, §1, p.17-18.
[3] Para isso ver, por exemplo, HABERMAS, J. “Técnica e ciência enquanto ‘ideologia’”; VII, p. 336. In: Pensadores. São Paulo: 1980.
[4] Ver, por exemplo: LUKÁCS, Georg. Antinomias do Pensamento Burguês. In: História e Consciência de Classe. Martins Fontes, p. 250.
[5] Idem, §§19-20, p. 42.
[6] ADORNO, T. Dialética Negativa. Jorge Zahar Editora: Rio de Janeiro, 2009, p.19.
[7] ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Idem, §17, p. 38.
[8] Idem, §17, p. 39.
[9] Idem, §21, p. 43.
[10] “Nebulosa cucolândia”, expressão cunhada por Aristófanes (As Aves, 819). Cf. NIETZSCHE, F. Sobre Verdade e a Mentira no Sentido Extramoral. São Paulo: Hedra, 2008; p. 34.

[11] Idem, §19, p. 44.
[12] Idem, §19, p. 45.
[13] Idem, § 22, p. 49.
[14] Idem, §23, p. 53.
[15] Idem, §3, p. 14.
[16] Idem, §5, p. 18.
[17] Idem, §3, p. 14-15.
[18] Idem, §4, p. 16.
[19] Idem, §5, p. 18.
[20] Para isso ver, por exemplo: NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. Segunda Dissertação, §13.
[21] Idem, §7, p. 19.