quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

O TERROR NA ERA DA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA

"A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte tipo de medo  é o medo do desconhecido."
                                                               H.P. Lovecraft, O Horror e o Sobrenatural na Literatura

                Gelam as veias daqueles que percebem a verdadeira natureza do horror: é que o terror é sempre uma pequena parcela, uma pequena amostra daquilo que o Cosmos pode nos reservar. O terror, portanto, não é propriamente a revelação inusitada daquilo que escondemos de nós mesmos, isto, pelo contrário, é patrimônio do  humor. O terror se dá apenas quando, assim como o erotismo (que permanece erótico, sem adentrar no território da pornografia) que mostra para esconder e insinua para inquietar a imaginação (e por isso o erótico é morte e flerta com o terror), aparece e logo se esconde, para que, como um vulto, chame a atenção, na escura noite da percepção.
                O terror, portanto, manifesta-se em sua natureza minimalista: o evento acontece e se o espectador tornar-se um monomaníaco e um paranoico, precisamente por aquele vulto, então ele estará aterrorizado. É devidamente a isso que o humor-negro que é efetivamente engraçado sublinha a inteligência de seu elaborador, por mais incômodo que seja, houve ainda uma dupla operação: primeiro omitiu-se, artisticamente, a informação de difícil aceitação e, em segundo lugar, foi dada uma pequena amostra do que se omitiu, ainda que como um vulto. É a melhor forma de demonstrar inteligência, tornamo-nos aterrorizados e admirados pelo autor da sagacidade.
                O humor-negro pode ser, portanto, uma maneira de ganharmos aceitação em um meio social, suscitando, naqueles que nos desprezam, um sentimento de admiração comparáveis a que se tem a um Deus, em um misterium tremendum, que atrai e congela o sangue nas veias ao mesmo tempo. Há quem diga que apenas o terror isoladamente já atrai, porque o homem também é um ser de morte  e luta incessantemente contra esta sua primeira inconveniente característica: Ser, e realiza este desprezo essencial em sonhos e em uma admiração secreta aos inimigos mais mortais.
                Por muitos séculos os povos flertam com o terror, seja como uma maneira de enobrecer ritos e histórias, seja para conquistar o respeito de seus inimigos. Para Maquiavel, o governante deve escolher ser temido porque para ele é impossível ter ambos, ser amado e temido: precisamente o grande revolucionário da política não conseguiu ser igualmente grande na psicologia. Deus é amado e temido, o terror é amado e temido, assim como a morte e o comediante sagaz.
                Precisamente porque o terror é tão útil a ponto de tornarmo-nos com ele e através dele, deuses, cresce o interesse técnico em sua mais eficiente aplicação. Na literatura, evidentemente, é discutido, por exemplo, com Alan Poe, como uma espécie de empreitada técnico-artística: o efeito é fruto da interação do leitor com um meio (que pode ser um livro) que, como uma máquina possui um objetivo e uma arquitetura bem definidos. O terror é um efeito. E assim foi sendo discutido até seu ápice, no século XX, quando se reúnem um competente time de psicólogos e médicos com o intento de estabelecer uma teoria precisa da melhor e mais eficiente maneira de se infligir dor, este esforço deu luz ao Kubark Manual, o manual de tortura enviado a todas as ditaduras latino-americanas para melhor lograrem êxito em sua empresa de controle social.
Anos mais tarde, chegaria sua versão revisada, o Honduras Manual, uma espécie de apanhado técnico e revisão das teorias que melhor funcionaram em sua aplicação. Tais manuais foram revolucionários no estudo da tortura: enquanto, na maior parte da história da humanidade, a tortura foi simplesmente a “arte” de infligir dor (como nos relatos de Cortez, na conquista da América espanhola, que cozinhava no óleo fervente índios vivos), com o Kubark, a tortura passa a ser adaptada a individualidade de cada um, já que cada um possui o seu inferno particular, o reproduziremos, então. Não apenas isto, o Kubark insere a polêmica ideia de que muitas vezes, a melhor tortura acontece sem muito tocar na vítima. A CIA começava a discutir, em seu quartel general, o conceito de privação dos sentidos. A privação de sono unida com a privação dos sentidos (sem luz solar, sem horário regulares nas ‘refeições’, sem a possibilidade de sentir o próprio corpo, em alguns casos, até de ver outras cores, no famoso ‘quarto branco’), desmantela o ego, porque impossibilita o estabelecimento de um eu sólido,  e faz com que a fonte revele todos os segredos, além de promover, a reboque, a lavagem cerebral.
 O capítulo IX do Kubark, “O interrogatório coercivo de fontes resistentes”, possui uma seção especial, a seção F, “ameaças e medo” que diz, em uma tradução livre:
“A ameaça de infligir dor, por exemplo, pode desencadear medos mais danosos do que a imediata sensação de dor. De fato, a maioria das pessoas subestima sua capacidade de suportar a dor. O mesmo princípio sustenta outros temores: se mantido por tempo suficiente, um grande medo de algo vago ou desconhecido induz a regressão. No entanto a materialização do medo, a aplicação de alguma forma de punição, é uma forma de alívio. O sujeito vê que pode suportar, e se fortalece. ‘ Em geral brutalidade física direta gera apenas ressentimento, hostilidade e desafio posterior.’” O Kubark sustenta que é melhor infligir dor física no início da tortura, não no final: dá-se apenas o script para que a vítima torture a si mesma.
                Este refino técnico – científico da tortura, naturalmente, exige uma atenção especial ao torturado, muita força energia e pessoal são gastos no processo. Uma dominação de escala global, que necessita de um controle crescente dos que estão sob seu julgo, necessita de uma aplicação mais barata, eficiente e que “atenda” mais pessoas. Assim, pois, como a empresa transnacional impessoaliza seus serviços e produtos para atender em uma escala global, também assim será com o terror e a guerra. Os grandes estados nacionais, que possuem o mundo para dominar, não podem se dar ao luxo de dedicar ‘atenção especial’ a todas as suas vítimas. Nasce o terror quantitativo.
                O objetivo, agora, é demonstrar como o Estado que pretende defender seus interesses tem capacidade para tal. Seu big-stick anônimo não escolhe vítimas, escolhe números, e portanto atende a principal característica do terror no início deste texto: mata grande parte de um povo, mas não diz quem mata. Revela apenas o mínimo para o medo se desencadear. Demonstra à maneira ocidental, como infligir dor de uma maneira geral e técnica. Esta é a versão do terror instrumentalizado.
O Terrorista do país subdesenvolvido, no entanto, não possui tais meios. Tem uma certa pureza, já que ao decapitar o cidadão provindo do país opressor, ele acha que poderá ai fazer algum tipo de pressão contra a força onipresente do Capital. Ele, diferentemente do país colonizador, ainda vê matar uma pessoa como algo grave, e quando mostra a morte em vídeo e a cores na internet livre, não poupa teatro para uma nação que está acostumada a ver sangue na televisão, e quer exprimir como a força de seu ato provém de uma situação extrema, resultante da degradação de seu povo e do povo de seu inimigo (já que agora é vítima), e que deveria pesar para os líderes políticos. Ele demonstra o sangue da vítima, escolhe alvos como escolas, hospitais e símbolos econômicos. Quer demonstrar que a gravidade de seu terror é alta. Paradoxalmente, é este terrorista que destaca o indivíduo, e o símbolo, não alvos estratégicos para a economia, em sua maioria, visa alvos morais, símbolos da manutenção daquele modo de vida,  no entanto, em sua ingenuidade não vê que a espada de seu inimigo já denuncia seu escudo. Aquele que conduz uma morte técnica em massa, promoverá uma reação ao ataque terrorista qualitativo igualmente técnica e quantitativa. A máquina de matar, que é o Capital (que mata muito mais que os terroristas qualitativos), pouco liga para o mundo da vida, a ele interessam os números: quantas pessoas, em números absolutos reagirão em contraposição aos seus interesses devido a aquele video? Poucas. Mas isso ainda é algo contornável se considerarmos o aparato técnico e instrumental que ele moverá para alterar estes números por meio da propaganda e manipulação da opinião do cidadão médio por meio da mídia.
O minimalismo do terror ocidental é tão gigantesco que ele deseja não mais mostrar um pouco de horror. Ele demonstra apenas o horror em forma e furta-se do conteúdo. O terror ocidental é mais eficiente precisamente porque está mais rente ao conceito mesmo de terror. O oriente não conseguiu ainda desvincular o medo da vida, a guerra do drama, o mito do “fazimento” que para o ocidente é sem sentido e ritualístico e que no entanto é precisamente este conteúdo perdido, e portanto esta admiração secreta daquilo que lhe falta, que o ocidente deseja resgatar em suas vitórias de guerra quando, em suas relações públicas, diz defender a liberdade, ao executar seu terrorismo. Longe das denominações oficiais, o terrorismo apenas se diversificou.