segunda-feira, 11 de julho de 2016

Comunicação: ENEFIL - Jampa 2016.

ENSAIO SOBRE O FASCISMO NO “CONE SUL”: O CASO BRASIL

  
Não podemos falar sobre os regimes militares do passado recente da América Latina sem trazer à tona o tema da constituição ideológica de suas classes dominantes e do processo histórico de formação de sua dependência ao exterior. É evidente que cada país teve um processo de formação específico e que um trabalho isolado não poderia abranger esse imenso material. Mas, de outro lado, grande número dos países que fazem parte do que hoje se chama “América Latina” foram colonizados a partir do século XV por principalmente Espanha e Portugal. Em nosso passado recente, qual seja, da década de 60 do século XX para cá, sabe-se bem que essa grande área foi de interesse direto da manutenção do poder hegemônico internacional dos Estados Unidos. Mais especificamente, daremos destaque aqui ao caso do Brasil, dentre os outros acontecimentos que se abateram na época sobre seus vizinhos próximos, na região do chamado “Cone Sul”. Diante dos últimos parcos resultados obtidos pela tardia instauração da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, o fio condutor da análise será a pergunta, em aberto, “o que significa elaborar o passado?”, feita originalmente por Adorno na Alemanha redemocratizada dos anos 60.
A partir dessa pergunta, ensaiaremos possíveis direcionamentos indicados pela crítica à ideologia, lançando mão daquilo que não concerne apenas ao contexto social alemão após a derrocada do nazismo, mas à “situação social geral” na modernidade (ADORNO, 2000, p. 33). No caso do Brasil, e do Cone Sul, em que predominou o processo de colonização européia durante séculos, precisaremos pontuar as especificidades do desrespeito social e da invasão cultural inerentes às formas de dominação e opressão que mantêm o poder oligárquico da classe burguesa (FREIRE, 2008, p. 159-160) – em uma cotidiana relação assimétrica de reconhecimento social (HONNETH, 2015, p. 248).

Crítica à ideologia: o que significa elaborar o passado?

Em primeiro lugar, não é demais frisar a que postura cognitiva se refere a crítica. Vulgarmente usada com o sentido simples de “ideário”, “ideologia” é um neologismo que ficou conhecido a partir da publicação da obra Eléments D’Ideologie (1801-1815), de Destutt de Tracy. Como um seguimento francês do empirismo lockeano, persegue-se a origem das “ideias” como fenômenos naturais obtidos através da sensação. Desse modo, as “ideias” são tomadas na acepção de “estados de consciência” do indivíduo na interação com o ambiente ao redor. Essa posição também será levada a cabo pelo positivismo de Auguste Comte no tratamento dos fenômenos sociais. Como tal postura cognitiva tende a naturalizar relações sociais que são fruto de processos históricos, o esquecimento da atividade humana situada em um contexto de interação social gera a vivificação das coisas, das mercadorias, e a dominação e mortificação daqueles que as produzem[1].
De maneira geral, observa-se como estratégia ideológica do fascismo a administração de afetos sociais, sobretudo o medo e o impulso por autoconservação. Podemos caracterizar a fundamentação inicial da filosofia social moderna a partir de seus traços anti-aristótelicos, que são em grande medida reflexo das transformações estruturais nos modelos tradicionais de sociedade no Ocidente europeu, desde a baixa Idade Média até o Renascimento. O modelo secularizado de sociedade que passa a surgir, na demanda da expansão marítima da zona comercial e do consequente desenvolvimento técnico-científico que garante cada vez maior eficiência no controle e fiscalização da circulação de mercadorias, foi um modelo que rapidamente evidenciou a competição, as ambições, a suspeita entre os indivíduos, moldados agora por um agir orientado para o sucesso pessoal. Em consequência dessa forma de agir, disseminada e justificada socialmente, surgiram as teses modernas acerca da perigosa “natureza” humana, tratada quase como uma “essência”, ou do perigo de um declínio ao caótico “estado de natureza”, a barbárie da defesa inegociável do interesse privado que instauraria a “guerra de todos contra todos”. Frente a essa hipótese artificial, seria preciso a coerção incessante do Estado, firmada previamente pela via do contrato, cujo assentimento é concedido pelos associados em troca da segurança de sua vida e de sua propriedade particular.
Mais tarde, com a crítica efetuada a partir da dialética hegeliana, ficou evidente que a cisão ética é uma característica imanente à organização da sociedade civil burguesa. Esse novo modo de organização social dessacralizou o mundo da vida humana e promoveu a impossibilidade da integração das pessoas no âmbito de suas comunidades tradicionais. Com a ascensão do positivismo nas ciências, os modelos mecanicista e atomista passaram da objetificação da natureza para a análise dos fenômenos sociais e para o próprio modo de organização da vida, operando matematicamente, do mesmo modo, apenas com quantidades e abstraindo de qualquer “resto”: qualitativo ou temporal. Assim, na sociedade de produção industrial, memória, tempo concreto e lembranças, bem como a experiência acumulada socialmente, são eliminados como “resto irracional” (ADORNO, 2000, p. 33). Esse diagnóstico permite perceber porque o esquecimento do trauma coletivo recente, do horror dos assassinatos administrativos, se deve muito mais à “situação social geral” da sociedade civil burguesa do que à psicopatologia de um contexto sociohistórico em particular[2].
Nesse texto publicado em 1963, “O que significa elaborar o passado?”, reunido na obra Educação e Emancipação, em torno de 20 anos após a derrocada do nazismo, Adorno parte da atmosfera do trauma coletivo recentemente vivido e do, digamos assim, etéreo complexo de culpa decorrente do acontecido. Tenhamos em mente esse intervalo de tempo, após a artificial redemocratização, para pensarmos o problema da elaboração do passado no caso brasileiro.
O trauma social deixa marcas em uma forma de agir cotidiana que gira em torno de relações de culpa e violência, que aparecem por vezes de maneira muito velada, por outras como um surto animalesco de ódio. Como pontua Adorno, essas relações sociais se assemelham ao quadro psicopatológico da neurose: gestos de defesa sem agressão direta; sentimentos profundos sem justificativa, mas ausência de sentimentos em situações graves; repressão do conhecido e do semiconhecido (ADORNO, 2000, p. 30).
De outro lado, chama atenção a disposição atual em negar ou minimizar o ocorrido. No caso da Alemanha redemocratizada, como diz Adorno, “existem pessoas que não se envergonham de usar um argumento como o de que teriam sido assassinados apenas cinco milhões de judeus, e não seis” (ADORNO, 2000, p. 31), aqui nós temos a expressão “ditabranda”. Entra em questão o absurdo de uma contabilidade da culpa em relação aos assassinatos administrativos, de modo que até mesmo a inocência das vítimas é desacreditada: a desmesura do mal praticado se torna justificativa – de alguma maneira, ocorreu porque elas “deram motivo”.
O discurso do complexo de culpa dá notas de algo irreal: o terrível passado seria coisa da imaginação dos afetados. Esse é um discurso que visa à destruição da memória e gera a perda da continuidade histórica, o que se vê no fato de as gerações mais jovens desconhecerem, por exemplo, o que foi e por que aconteceu o golpe civil-militar de 1964. A partir da Segunda Guerra Mundial, é possível observar a progressividade e intensificação dos princípios da racionalidade burguesa, cujo modelo de sociedade administrada é subordinado universalmente à lei de troca das mercadorias. Em sociedades tradicionais pré-capitalistas, até o advento do mercantilismo, existia a ênfase na categoria da aprendizagem, expressada pelo tempo de aquisição da experiência no ofício, geralmente resguardada por uma acumulação de saberes passados de pais e mães aos filhos. Como o tempo concreto dos trabalhadores se torna desnecessário na produção industrial, bem como a experiência acumulada socialmente, memória e lembranças são eliminadas como inúteis para a contabilidade empresarial. Vemos com isso, que o esquecimento se deve majoritariamente à organização e divisão social do trabalho, que se valem, inclusive, dos mecanismos psicológicos de recusa a lembranças desagradáveis vividas para objetivos práticos imediatos, como por exemplo, evitar mexer no período obscuro para a manutenção da imagem do país no exterior. Isso onde o parâmetro era o do trabalho assalariado livre, no nosso caso, como o Brasil se fundou como empresa colonial de base escravista, essas características estiveram sempre presentes – os exemplos históricos de silenciamento são inúmeros[3].
Assim, para Adorno, o esquecimento se deve muito mais à “consciência vigilante” do que a processos inconscientes, de que decorre a raiva de ter de convencer a si mesmo, antes de convencer os outros. A motivação e o comportamento de recusa são irracionais obviamente porque distorcem os fatos, mas são “racionais” porque se apoiam em tendências sociais vigentes. Vivemos em meio à ideologia socioeconômica neoliberal, imposta laboratorialmente nas nações proletárias da América Latina, acirrando ainda mais os princípios básicos da sociedade civil burguesa: individualismo; concorrência mútua; consequente administração dos afetos sociais do medo e da esperança.
A reintrodução da democracia no Brasil, após 1964, se deu como a transição dos outros regimes de poder: pela mão das classes dominantes e para não prejudicar os interesses da metrópole, nesse caso, dos Estados Unidos. O interesse norte-americano na implantação dos regimes ditatoriais na América Latina do período de auge da Guerra Fria fica ainda mais claro com a chamada “Operação Condor” no Cone Sul – condor, o animal que come carne pútrida e desaparece com os cadáveres. Entre as décadas de 70 e 80, essa operação se deu através do conluio entre os regimes ditatoriais e a CIA no intuito de combate aos grupos de resistência. No Brasil dos anos 70, no governo Geisel, surgiu a ideia de uma transição controlada: uma abertura “lenta, gradual e segura”. Em 1974 foi elaborada a chamada “Lei de Anistia” que poderia beneficiar os presos políticos e os exilados. Mas, foi a partir desse mesmo ano que mais opositores tiveram seus corpos desaparecidos, isso porque não se poderia deixar provas. É também o período em que a luta armada acaba. O caso mais emblemático desse fim é o de Soledad Barret, torturada e assassinada pelo DOI-CODI, grávida de seu companheiro, na verdade, um infiltrado e informante da ditadura[4].
A reintrodução da democracia aqui não provocou uma ruptura. Principalmente porque as pessoas continuam a não se reconhecerem como sujeitos do processo político, para elas é apenas mais um “sistema entre outros”. Isso porque a democracia não é entendida como expressão da vontade e do intuito da emancipação popular. Como diz Adorno, a democracia é avaliada conforme o respectivo sucesso: no qual tem vez interesses individuais, mas não como unidade com o interesse público, situação que é dificultada pelo modo de representatividade da vontade popular através da delegação parlamentar[5].
A falta de emancipação é convertida em ideologia, o que demonstra a contradição na consciência: por um lado, as pessoas se sentem como sujeitos de si, mas as condições vigentes as impedem. No caso do Brasil, essa impossibilidade é atribuída historicamente, a si mesmo ou a outros: ou a uma incapacidade própria da constituição dos brasileiros ou a grupos específicos. Esse impedimento faz com que as pessoas se dividam novamente entre sujeito e objeto. A ideologia dominante é tal que quanto mais estiverem impedidos pelas condições objetivas, mais tomarão essa impotência como subjetiva[6]. Essas pessoas, assim formadas, são o que Adorno chama de os seguidores potenciais do totalitarismo.
   
A noite de 21 anos: o fascismo no Brasil

A partir do diagnóstico da situação que realmente gera o fascismo e os “os seguidores potenciais do totalitarismo” (ADORNO, 2000, p. 37-38), podemos ensaiar prognósticos, ponderando principalmente sobre o conceito do que Adorno chama de pedagogia democrática, que operaria no esclarecimento acerca daquilo que ocorreu (ADORNO, 2000, p. 45). No caso do Brasil e do Cone Sul, poderíamos ir mais fundo, evidenciando o problema da nossa dependência ao exterior, através do desenvolvimento daquilo que Paulo Freire chama de pedagogia do oprimido, a fim de, ao elaborar o passado, que se persiga o objetivo da transformação social efetiva de nosso “subdesenvolvimento” através da educação para a prática da liberdade (FREIRE, 2008, p. 89).
O fascismo não apenas no Brasil, mas na América Latina, é de um tipo diferente e com finalidades diferentes. Isso porque a barbárie administrada aqui se instalou, não por eventualidades do Capitalismo avançado, no século XX, desgarradas como novo processo, mas como desdobramentos intrínsecos da manutenção de poder da empresa colonial, desde o século XV. A forma superior do desrespeito social perdura porque os pressupostos objetivos apenas estiveram perto de serem transformados[7]. Esse “estar perto” deixa a velha ordem em pavor pânico, que faz com que procure reconstituir sua rede de poder através da intensificação do aparato repressivo, formado pelas classes intermediárias que anseiam ascensão social, e do controle total sobre as instituições políticas.
O fascismo na Europa veio para atender a realização de um “sonho burguês antigo”, o ideal romântico de estar integrado em uma “comunidade popular” (ADORNO, 2000, p. 38), o que alimentou e, realmente, parece que satisfez o narcisismo coletivo mediano. Um processo sociopolítico muito diverso do que ocorreu na América Latina. Nossa formação sociopolítica se deu através do colonialismo, que engloba todas as formas do desrespeito social, quais sejam: a lesão física, tortura e violência corporal[8]; a lesão moral, recusa de direitos e garantias pessoais; e a destruição cultural[9]. As formas de desrespeito, como estuda Honneth em sua obra Luta por Reconhecimento, são resultado da falha na formação de reconhecimento na consciência social, em contraposição às formas: do amor, na recepção e formação da criança; do direito, no atendimento das reivindicações de grupos de interesses e da solidariedade, na formação social da eticidade inclusiva. No Brasil, como mostra muito bem Darcy Ribeiro, em sua obra magna O povo brasileiro:
“Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo o direito elementar de trabalhar para nutrir-se, vestir-se e morar. Essa primazia do lucro sobre a necessidade gera um sistema econômico acionado por um ritmo acelerado de produção do que o mercado externo dela exigia, com base numa força de trabalho afundada no atraso, famélica, porque nenhuma atenção se dava à produção e reprodução de suas condições de existência. Em consequência, coexistiram sempre uma prosperidade empresarial, que às vezes chegava a ser a maior do mundo, e uma penúria generalizada da população local. A sociedade era, de fato, um mero conglomerado de gentes multiétnicas, oriundas da Europa, da África ou nativos daqui mesmo, ativadas pela mais intensa mestiçagem, pelo genocídio mais brutal na dizimação dos povos tribais e pelo etnocídio radical na descaracterização cultural dos contingentes indígenas e africanos.” (RIBEIRO, 1995, p. 404).

A invasão cultural, em vista da manutenção do domínio, se realiza em torno de mitos repetidos, estruturados posteriormente pela forma positivista da “ordem” militarista, com o objetivo do “progresso”. Mas, progresso para quem? Obviamente que para a burguesia, que não poderia deixar de contar com o apoio da pequena burguesia, a “lança de ferro” contra a união do povo. Verdadeiras guerras de extermínio foram travadas, sempre com o apoio moral e material das instituições públicas e oficiais, com o intuito messiânico-civilizador. Elas ainda permanecem. Não foram inventadas pela ditadura. Para a classe trabalhadora, à exceção da inédita formação nacional do movimento trabalhista, não houve muita diferença na opressão cotidiana, nem houve espanto na permanência ostensiva de uma polícia militar, junção que aliás nos parece até natural. Do extermínio indígena à tortura dos negros escravizados, dos negros alforriados à formação das favelas e periferias: o capataz da fazenda e o capitão do mato do engenho não mudaram.
O tema acerca de “dizerem a palavra ou não terem voz”: Freire dá a máxima atenção, na sua reinterpretação da dialética hegeliana do senhor e do escravo, à condição de formação da consciência oprimida de ser apenas um “ser para outro”, uma “coisa” que, enquanto tal, não é uma “pessoa” que tem direitos a realizar-se. Os oprimidos enquanto “consciência servil” (FREIRE, 2008, p. 40) são os que “temem a liberdade” e são assim silenciados – “No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel preferindo-a à liberdade arriscada” (FREIRE, 2008, p. 24). Desse modo, introjeta-se formativamente neles a consciência opressora, o outro que lhes aliena, como um “hospedeiro”, que, nesse modo, age para reproduzir a rede de poder opressiva. Esse é o caso observado nas classes intermediárias. Conferir exemplo do “capataz” (FREIRE, 2008, p. 36). Conferir “coronel fazendeiro” x “cabra” (RIBEIRO, 2006, p. 200).
A formação educativa, portanto, em vista da realidade objetiva da opressão, deve ter por pedagogia, uma pedagogia libertadora (FREIRE, 2008, p. 34), na qual a relação entre educador e educando seja dialógica, ou seja, na qual é imprescindível que o educando também se revele como educador, a interação entre sujeito e objeto é de reconhecimento recíproco – o objeto, livre, também faz as vezes de sujeito, consignando a relação de liberdade. Não é o caso de se pensar em uma educação para os oprimidos, mas em uma que se faz com eles na intenção radical de “transformação da situação concreta que gera a opressão” (FREIRE, 2008, p. 40) através da práxis libertadora que continuamente liberte a todos e faça surgir uma “nova” humanidade, uma humanidade “libertando-se” (FREIRE, 2008, p. 38). O método pedagógico é a pesquisa e a construção conjunta de um conteúdo programático obtido a partir do “tema gerador”, aquilo que é da necessidade e interesse da situação dos educandos-educadores, quer dizer, a partir de sua linguagem cotidiana, de sua “palavra” (FREIRE, 2008, p. 131). O diálogo e o caráter pedagógico da revolução (FREIRE, 2008, p. 156).

Palavras-chave: fascismo; ditadura militar; Brasil.


Referências bibliográficas:

ADORNO, T W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2000.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2008.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
HONNETH, A. ­Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2015.
MARX, K. O Capital. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
URIBE, Armando. "Ideologia e folclore do fascismo chileno". In: Elementos para uma análise do fascismo. M. A. Macciocchi.





[1] Com a discussão desse tema, em O Capital, Marx mostra a tendência do pensamento burguês de naturalização dos processos econômicos, bem como a coisificação dos produtos do trabalho social, através da análise do fetichismo da mercadoria: “Até que ponto uma parte dos economistas é enganada pelo fetichismo aderido ao mundo das mercadorias ou pela aparência objetiva das determinações sociais do trabalho demonstra, entre outras coisas, a disputa aborrecida e insípida sobre o papel da Natureza na formação do valor de troca. Como o valor de troca é uma maneira social específica de expressar o trabalho empregado numa coisa, não pode conter mais matéria natural do que, por exemplo, a cotação de câmbio.” (MARX, 1996, p. 207).
[2] “Pesquisas feitas nos Estados Unidos revelaram que esta estrutura da personalidade não se relaciona tanto assim com critérios econômico-políticos. Ela seria definida muito mais por traços como pensar conforme as dimensões de poder — impotência, paralisia e incapacidade de reagir, comportamento convencional, conformismo, ausência de autorreflexão, enfim, ausência de aptidão à experiência. Personalidades com tendências autoritárias identificam-se ao poder enquanto tal, independente de seu conteúdo. No fundo dispõem só de um eu fraco, necessitando, para se compensarem, da identificação com grandes coletivos e da cobertura proporcionada pelos mesmos. O fato de por toda parte reencontrarmos figuras caricatas como as representadas nos filmes sobre meninos prodígios, isto não depende nem da perversidade do mundo como tal, nem de peculiaridades do caráter nacional alemão, mas sim da identidade daqueles conformistas, que possuem de antemão um vínculo com os instrumentos de qualquer estrutura de exercício do poder, com os seguidores potenciais do totalitarismo.” (ADORNO, 2000, p. 37-38).
[3] “O sistema econômico e político, gerando o mesmo tipo de estratificação e de ordenação cívica, criou em cada unidade a mesma forma de hierarquização que qualificava, face à sociedade total, as camadas dirigentes de cada variante como componentes da mesma estrutura de poder, e as fez essencialmente solidárias frente à ameaça comum representada pelo antagonismo das classes oprimidas. O patronato, na função de coordenador das atividades produtivas, e o patriciado, no exercício do papel de ordenador da vida social, puderam assim fazer frente a todas as tendências dissociativas, preservando a unidade nacional.” (RIBEIRO, 1995. P. 232).
[4] Estão sendo reveladas pelas investigações e pelos julgamentos, principalmente fora do Brasil, as atrocidades cometidas inclusive a mulheres grávidas: “Ao hospital militar de El Campito [em Buenos Aires] eram levadas as presas grávidas, onde eram alojadas no prédio do Serviço de Epidemiologia, sempre vigiadas por homens armados. Apesar da gravidez, as mulheres eram mantidas com algemas e capuz na cabeça. Os partos, realizados por profissionais civis e militares no serviço de Ginecologia e Obstetrícia, eram na sua maioria induzidos por cesarianas. [...]Um dos casos mais simbólicos desse drama humano é o do jovem uruguaio Simón António Riquelo, desaparecido com a mãe, Sara Méndez, na noite de 13 de julho de 1976, em Buenos Aires, onde a professora vivia exilada. Pelo padrão paranoico da repressão, o jovem era um perigoso comunista, apesar de seus tenros 22 dias de vida: Simón era um bebê, e foi arrebatado do peito da mãe pelo major de artilharia uruguaio José Nino Gavazzo, chefe de operações do SID, o temido Serviço de Informações de Defesa da ditadura de Montevidéu.  [...] Apartada do filho, Sara, encapuzada e algemada pelas costas, foi suspensa por um gancho como um pedaço de carne no açougue. Levou choques elétricos, que ganhavam intensidade quando ela conseguia tocar o chão molhado com a ponta dos pés. Em dado momento, um dos torturadores perguntou a Gavazzo porque o chão estava esbranquiçado. — Es leche! — foi a resposta. Leite que vazava do seio de Sara, leite negado a Simón, expropriado por Gavazzo, usurpado pela Orletti, sequestrado pela Condor.” In: “Operação Condor condenada: História na Argentina, vergonha no Brasil”. Publicada em 10/06/2016. http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Operacao-Condor-condenada-Historia-na-Argentina-vergonha-no-Brasil/4/36266
[5] “Na Alemanha, ouviremos com frequência dos próprios alemães a estranha afirmativa de que eles ainda não estão maduros para a democracia. A própria falta de emancipação é convertida em ideologia, tal como o faz a juventude que, surpreendida em qualquer ato de violência, procura se livrar apelando à sua condição de teenager adolescente. O grotesco numa tal argumentação revela uma flagrante contradição na consciência. As pessoas que nestes termos procuram demonstrar com franqueza a sua própria ingenuidade e imaturidade política sentem-se, por um lado, como sendo sujeitos políticos, aos quais caberia determinar seu próprio destino bem como organizar a sociedade. Mas deparam-se, por outro lado, com as sólidas barreiras impostas pelas condições vigentes. Como não podem romper essas barreiras mediante o pensamento, acabam atribuindo a si mesmos, ou aos adultos, ou aos outros, esta impossibilidade real que lhes é imposta.” (ADORNO, 2000, p. 35-36).
[6] “Conforme o ditado de que tudo depende unicamente das pessoas, atribuem às pessoas tudo o que depende das condições objetivas, de tal modo que as condições existentes permanecem intocadas. Na linguagem da filosofia poderíamos dizer que na estranheza do povo em relação à democracia se reflete a alienação da sociedade em relação a si mesma.” (ADORNO, 2000, p. 36).
[7] Cf. RIBEIRO, p. 301-302.
[8] “A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhe caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.” (RIBEIRO, 2006, p. 108).
[9] Diante dos estudos de Sartre sobre o tema, diz: “O colonialismo é entendido aqui como um estado social que deforma as relações intersubjetivas do reconhecimento mútuo, de maneira que os grupos implicados são prensados igualmente num esquema comportamental quase neurótico: enquanto os colonizadores só podem elaborar com cinismo ou com agressão intensificada o desprezo que sentem por si mesmos, já que degradam sistematicamente os nativos, os colonizados somente são capazes de suportar as ‘ofensas diárias’ através da cisão de seu comportamento nas duas partes constituídas por uma transgressão ritual e uma superadaptação habitual.” (HONNETH, 2015, p. 248).

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